Há uns poucos meses, nasceu uma bebê especial na minha vida. E quando esses bebês chegam, nossa capacidade de amor fica ampliada, nossa esperança na humanidade aumenta e a gente acredita que o mundo precisa ser melhor: só porque nasceu um ser especial.
Ser tia é uma coisa que experimento pela terceira vez de maneira direta pelas crias das minhas irmãs, noves fora os sobrinhos por parte do marido e dos filhos dos amigos da vida. E quando minha última sobrinha nasceu, esse bebê de que te falo, meus olhos quase instantaneamente eram para ela, por mais que eu estivesse a mais de 1000 km de distância. Mesmo assim, me policiei para fazer busca ativa e ter olho atento e focado para enxergar minha irmã: saber dela, assuntar como ela estava, como estava passando, como eram as noites no meio dessa novidade toda de maternar. E todo dia eu mandava mensagem, tentava ligar mesmo com medo de atrapalhar, tentava assuntar sem ser invasiva (demais).
Até que lá pelo décimo dia pós-parto, veio a fala com choro em voz alta: “não estou bem”, “tá muito difícil”, “tô falando que tô bem só pra ninguém me tirar a pequena de mim, mas isso não tá legal”, “não sei se tô fazendo o bem pra ela”, “só quero chorar”, “meus mamilos estão esfarelando em carne viva”, “faz 10 dias que não durmo”, “queria até deixar pra lá mas eu não posso, ela precisa de mim”, entre outras falas. Parei, respirei e pensei: “cadê tudo que você já estudou sobre comunicação e acolhimento, mulher? É agora a hora de usar!”. E com a voz mais doce do mundo (porém tremendo de medo por dentro e com toda a vontade de ir direto pra Congonhas pegar o primeiro vôo para abraçar minha irmã) disse: “meu amor, você não tá sozinha. Vamos cuidar disso juntas?”.
E sim, cuidamos. Fizemos juntas naquela hora um plano de ação que incluía fazer contato com a terapeuta que sempre esteve junto para retomar de pronto o acompanhamento, marcar consulta com psiquiatra para ontem, fazer contato com a doula do parto e entender mais sobre amamentação e pega, descolar uma enfermeira especialista em laser para atendê-la, acionar a rede de suporte de família e amigos. Passei a mão no telefone e falei com a Sayô, uma enfermeira amiga que trabalhava junto comigo numa clínica oncológica, e combinamos a visita para a puérpera.
No dia seguinte: terapeuta atendeu e deu espaço para escuta e elaboração, doula atuou e confortou, Sayô fez visita com laserterapia, prescrição e orientações preciosas. “Diz pra Carol que não é para me pagar. Ela me ajudou há um tempo cuidando da minha avó, hoje sou eu que pude cuidar de você” (chorei litros). Psiquiatra atendeu com a urgência que ensejava, acolheu e medicou a depressão pós-parto (DPP). Amiga mais chegada que irmã conversou com jeitinho, mostrou que ela não estava sozinha, que isso ia passar e tudo ia ficar bem.
No outro dia: mamas um pouco melhores, um pouco mais de segurança em não se sentir sozinha e a iniciativa espontânea de fazer algo pequenininho por si, para que se sentisse bem: tomar um café da manhã. O primeiro no meio desses dias todos.
Poucos dias depois, eu conversava com uma amiga querida que também estava no puerpério, e intencionalmente perguntei por ela antes de perguntar pela bebê. Decidi que, por mais que eu não conheça as dores e delícias da maternidade – nulípara que sou!, iria puxar conversa com toda amiga que estivesse recém-parida, iria assuntar como ela estava antes de qualquer pergunta sobre a cria e me disponibilizaria para fazer qualquer coisa para e por aquela mulher: desde segurar a criança enquanto ela dormia um momento ou fazia algo de bom pra si e por si (tomar banho, uma massagem, uma escova no cabelo, fazer as unhas), me oferecer para estar perto para uma conversa ou só pra ficar junto mesmo, levar algo do mercado ou farmácia, fazer um cafezinho. Não seria a pessoa que visita a cria; seria a pessoa que visita a mãe e se doa um pouquinho para ela.
Coloquei uma lente no meu olho para enxergar com detalhes as puérperas na minha área de convivência e assuntar discretamente e indiretamente (um salve para os muitos anos de anamnese médica!) a possibilidade de ter DPP associada. E, não coincidentemente, percebi que a condição era mais frequente do que eu podia supor. Em uma simples busca na literatura médica, aprendi que a DPP pode estar presente em até 25% das mães no Brasil, e que fatores de risco muito prevalentes em nosso meio são atrelados à condição, por exemplo, da falta de rede de apoio social e suporte da família, gravidez não planejada, relacionamento conjugal ruim, baixos índices de escolaridade e presença de antecedentes psiquiátricos. Confesso: eu nunca estudei, tive aulas ou recebi informações técnicas sobre esse assunto na minha formação médica. E, sinceramente, jamais falei sobre DPP em uma roda de conversa e nunca busquei um post ou podcast sobre. Ou seja, é um tabu; socialmente não é bem-quisto falar sobre DPP, e a gente está fingindo que isso não importa. Nós todos, eu inclusive. E me senti culpada.
Minha irmã? Vai muito bem, obrigada! Mente e corpo cuidados, acolhida, retornando ao trabalho, se cuidando cada dia melhor para cuidar da pequena, feliz, realizada na maternidade e sendo uma excelente mãe. Há uns 10 dias, ela me contou que foi apoio para uma mãe de primeira viagem em puerpério imediato que estava mal, com dificuldades na pega e no cuidado com o bebê, com choro constante e se sentindo incapaz e culpada. Foi ombro, apoio, ouvido. “Conversei 10 minutos com ela, Cá. Estava desolada, com dificuldades bem parecidas com as minhas, me vi nela. Disse que ela não estava só e que não precisa passar por isso sozinha”. Deu de presente para essa mãe o gel que a Sayô tinha receitado para uso nos mamilos e alívio das dores. E combinou que ela faria o gel circular para outras mães depois que usasse, e que ela cuidaria das outras mulheres que estivessem no puerpério ao seu redor. “Você me ajudou. A Sayô me ajudou. Agora eu ajudo passando o ensinamento da Sayô da pega correta e passando o gel para a frente. E depois ela vai ajudar outra pessoa, e por aí vai”. E, preciosamente, me resumiu: “o bem é cíclico, irmã”.
Semana passada, o FDA – agência reguladora de medicamentos dos EUA, aprovou um novo medicamento para tratamento da DPP: a zuranolona, que pode ser administrada por via oral, tem resultados promissores e seguros, diminui os sintomas com mais rapidez que outros antidepressivos e tem expectativa de tratamento por 2 semanas. O cenário parece promissor e pode melhorar muito a vida de várias mulheres que atravessam o vale de sombra da DPP.
O novo remédio para DPP vai chegar ao Brasil? Torço muito, tomara que não demore. Até lá a gente vai seguir nessa nossa rede circular de cuidados, uma cuidando da outra. Esse cuidado de mulheres para mulheres é poderoso e salva a gente, não duvide.
O bem é cíclico. O cuidado na nossa rede de mulheres também o é.
Fonte: Mulher