Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 4 – A Visita do Comendador)

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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 4 – A Visita do Comendador)
Antonio Veronese

Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 4 – A Visita do Comendador)

A família Fragoso , incrédula e fascinada pelo “ar” aristocrático do inesperado visitante, colocou-o porta adentro não sabendo se passava um café , se ajeitava cabelos e roupas desgraciosos da manhã, ou se simplesmente disfarçava a desarrumação da acanhada residência tão bruscamente alterada em sua rotina matinal.

O pobre Fragozinho, tropeçando nas deferências o que denunciava seu nervosismo, “derramava-se” em comentários elogiosos à gravata, à bengala, ao carro, ao sotaque lusitano e mesmo à beleza da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que ele dizia conhecer de duas ou três fotos de uma antiga publicação que, prontamente, fez questão de resgatar de um velho baú.

Lilina serviu café acompanhado de sequilhos, que era tudo de que se dispunha. O Comendador, extremamente polido, esforçava-se por desobrigar os Fragoso de quaisquer protocolos. Em vão! Nos mínimos gestos, a húmile família insistia em dar à visita toda “pompa e circunstância”, o que a penúria da despensa, a bagunça da casa e o andrajo dos anfitriões contribuíam para encenação da ópera-bufa.

Depois do café tomado, dos sequilhos elogiados e da embaraçosa escrupularia, conseguiu o Comendador, finalmente, perguntar por Betinho:

– Afinal, disse ele, deixara seus negócios no Rio, submetendo-se à penosa viagem, exclusivamente por preocupação com a situação do menino, por quem sentia-se responsável, ainda que não o conhecesse pessoalmente. Lamentou a falta de notícias por ocasião da morte de seu pai, o que impossibilitara sua vinda ao enterro. Reiterou seu profundo apreço pelo dileto compadre Antonio Bento, denunciando, no olhar, neste momento, um lampejo de emoção.

Contudo, atendera o mais prontamente possível ao apelo que recebera e ali estava, disposto a contornar a penosa situação em que as partes se encontravam.

– Afinal, frisou, educar uma criança é tarefa que exige tempo e recursos. Tempo, desculpou-se, infelizmente tinha-o escasso; mas recursos não faltariam à educação do menino. Para isso aqui estou!

E, parecendo querer encurtar a conversa, completou com voz grave e decidida:

– Quero que saibam que, a partir de hoje contribuirei mensalmente com dez contos de réis para a educação de Bentinho!

Depois, puxando do bolso polpuda carteira, para qual convergiram avidamente todos os olhares da sala, sacou dela a quantia correspondente ao primeiro mês, estalidando notas novinhas, as quais contou sem pressa e depositou, sem encontrar resistência, nas macérrimas mãos de Fragosinho.

Fez-se um silêncio de morte! A impressão que se tinha era a de que Fragosinho e Lilina haviam mergulhado num túnel de alucinantes fantasias, embriagados de sonhos e devaneios até então impensáveis . Com tal importância, calculava o chefe da casa, teriam suficiência não só para o sustento de Bentinho mas de toda a família, com sobras que permitiriam prazeres até então inimagináveis ao parcíssimo destino que lhes fora reservado.

A truculenta Lilina, avançada no naufrágio dos anos e do desleixo, em quem a ausência de sonhos e as agruras da vida haviam esculpido patético marmo, esforçava-se para disfarçar o delírio que a vultuosa soma oferecida lhe causara, conseguindo concluir, em rápido raciocínio matemático, contas feitas e noves fora, com quantos novos vestidos poderia enriquecer seu andrajoso guarda-roupas.

Quando começou a pesar o silêncio na sala, esboçou Fragosinho uma formal resistência à oferta, afirmando não ser a doação necessária, ainda que mantivesse, bem cerrado na urna das mãos o maço de dez contos de réis. A patusca mulher então, na iminência da catástrofe e antes que o marido, como num terreiro de umbanda, incorporasse Oizus, arrancou-lhe o dinheiro das mãos, afogando-o de urgência nas profundezas do decote para, em seguida, dirigir fulminante olhar ao pusilânime marido. Fragozinho, consciente do risco que corria, preferiu dar de ombros e calar, resguardando-se de futuras tempestades…

Tendo agora o controle total da situação, Lilina desanuviou o olhar e, com um sorriso desfraldado no rosto, dirigiu-se exultante ao Comendador:

– Fique o senhor tranquilo; o menino terá do melhor que se pode dar!

– E por falar em Bentinho, onde está ele? perguntou o Comendador.

A mulher então, tendo já assegurado o inesperado “capital” nas vastidões cárneas dos peitos respondeu, assomada agora de absolutamente rara gentileza:

– Pescando, comendador, mas não deve tardar porque aqui o almoço servimos às onze em ponto. E o senhor, faço questão, fica conosco para almoçar!

O Comendador ainda tentou resistir, “não quero causar nenhum incômodo” retrucou, mas ela foi categórica, pois que em horas de interesse sabia ela, como ninguém, compor situações e costurar conveniências.

– Almoça conosco e não se fala mais nisso!

O susto de Bentinho

Não passou quarto de hora até que Bentinho entrasse na sala, trazendo três peixinhos de mixaria. Tomou um susto dos infernos! Ao ver Lilina correr em sua direção chegou a curvar-se esperando pelas bordoadas. Depois, pasmo, viu-se envolvido pelo volumoso abraço da mulher, que completou a cena insólita com a frase:

– Eis aqui o nosso Bentinho, Comendador, é como um filho para nós. Faz parte da família!

O susto estampado no rosto do menino ameaçou desmascarar a pantomima, mas a arguta mulher, com astúcia e destreza, tornou implexo o assunto e encorpada a conversa, tratando de enfatizar “a honraria de tão ilustre visita” com o intuito de desviar a atenção do português. Depois, dirigindo-se a Bentinho, ainda sufocado entre seus braços, ressaltou que ele devia agradecer o desvelo do Comendador, vindo de tão longe por seu cuidado.

O português, que via Bentinho pela primeira vez, ressaltou sua semelhança com o pai recém falecido. Os mesmos olhos, a face altiva, a testa larga, as sobrancelhas fartas e uma expressão que irradiava luminosidade a cada sorriso. Havia de ter herdado, presumia o fidalgo visitante, o mesmo caráter firme e o coração generoso, qualidades que aprendera a admirar no saudoso compadre, de quem falava com carinho e nostalgia. A amizade que sentia ainda por Antonio Bento sobrevivera à distância e à sua morte!

Ouvido sem ser interrompido pela pequena e atentíssima plateia, o comendador emocionou-se várias vezes lembrando do velho amigo marceneiro e a conversa, cheia de detalhes e remembranças, prolongou-se durante todo o almoço onde serviu-se magra galinha e uma saladinha chinfrim, regados por um bom tinto português trazido pelo comendador, que comeu e bebeu sem regatear.

Fragozinho, ainda chuchurreando seu último copo de vinho, polidamente declinou da oferta d’um puro havana que, uma vez aceso pelo Comendador, envolveu a casa de bálsamos exóticos e inebriantes expectativas…

Permaneceram sentados ainda por uma hora em torno da pequena mesa, atentos agora às saborosas histórias do português, como que hipnotizados por seus gestos largos e sobrantes e por seu mavioso sotaque d’além mar… Bentinho restou calado em seu canto, temeroso de falar algo que desagradasse à Lilina. Ele, que não presenciara o compromisso do Comendador com a vultuosa soma mensal, não entendia bem o que se passava e o porquê de tanta formalidade e reverência. Enquanto isso, a dona da casa, habilmente, estimulava a prolixidade do visitante, cuidando de manter cheio seu copo, agora de um tinto barato que resgatara do porão e, ao mesmo tempo em que procurava tornar acolhedora sua estada na casa, ansiava por sua partida, temerosa de que se desandasse a encenação.

Depois de conversar toda a conversa, de sucessivas trocas de reverências, por ser tão longa a viagem de volta e dado o avançado da hora, o Comendador dirigiu-se a Bentinho num tom afetuoso, quase paternal:

– Meu bom menino. O mínimo que posso fazer por ti, em reconhecimento a tanto que teu bom pai fez por mim, é propiciar-te tudo que um menino deve ter para crescer forte, bem-educado e feliz. Quando soube da morte de teu pai e da difícil situação por que passavam teus tutores , não vacilei em vir até aqui para levar-te comigo para o Rio de Janeiro…

O coração de Bentinho disparou no seu peito apertado! Ir para o Rio de Janeiro?!

– Mas, continuou o Comendador, percebo agora o quanto és amado por essa família, onde tratam-te como a um filho. Por essa razão, acredito que será melhor que permaneças aqui, além de tudo, por estares mais adaptado à realidade desta pequena cidade do que à de uma metrópole como o Rio de Janeiro.

– Desta forma, continuou, e sempre pensando no que possa ser o melhor para ti, acredito que aqui devas permanecer, no seio desta família que te acolheu com tanta dedicação e amor. Para tanto, comprometi-me com dona Lilina e senhor Fragoso, meu bom Bentinho, a destinar soma mensal com suficiência para tua educação.

Minha esposa, Maria Déa, gostaria imensamente de tê-lo conosco lá no Rio, mas as circunstâncias conduzem-me a esta decisao à luz do bom senso. Saiba, no entanto, continuou o Comendador ante mutismo absoluto da platéia, que qualquer coisa que eu possa fazer que acrescente algo a teu bem-estar, o farei de bom grado, bastando para isso que me escrevas.

O menino ouviu sem emitir palavra. A simples menção de ser levado para o Rio causara-lhe tal emoção e contentamento que sentira turvar-se a visão. Queria falar, espernear, gritar, enumerar em prantos todas as mágoas e sofrimentos acumulados pela tirania de Lilina, advogar a plenos pulmões sua ânsia de deixar aquela casa, de libertar-se do jugo de tristezas que lhe reservara o infortúnio destino. Mas calou-se, aprisionado pela timidez e o medo. Via escapar-lhe diante da inocência de seu olhar de menino, a oportunidade única de conhecer a tão sonhada cidade do Rio de Janeiro…Queria falar, mas nada falou, encarcerado à cadeira no canto da sala sob o soslaio ameaçador da gorda mulher. Depois veio uma vontade enorme de chorar, mas não chorou.

Nos últimos raios de sol daquela tarde, o reluzente chevrolet partiu, deixando atrás de si uma densa nuvem de poeira e tanto de esperanças adiadas. Bentinho acompanhou-o até onde seus olhos podiam sonhar. Com ele, na lonjura do horizonte, partiam seus sonhos, seus desejos, sua ventura.

(Continua na próxima semana)

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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Fonte: Nacional

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