Descobrir a base perfeita é como encontrar o Santo Graal da maquiagem, mas, quando se trata de pele negra, a jornada pode ser ainda mais desafiadora. A falta de variedade de tons de base e a desassistência das marcas com pessoas de pele negra, seja ela retinta ou não, contribuem para uma maior dificuldade para encontrar o tom perfeito.
Na última semana, a influenciadora de maquiagem Golloria George levantou o questionamento de até que ponto as empresas estão preocupadas com o tom mais escuro das bases. Em um vídeo, que passa de 11 milhões de visualizações, a digital influencer norte-americana questiona os seguidores: “De qual lado do meu rosto está a tinta preta e a base Youthforia?”
A base em questão é a tom 600 da Youthforia, da linha Date Night, que promete ser o tom mais escuro da marca. No entanto, o que temos é um produto que, basicamente, é composto por um único pigmento. A denúncia da base levantou uma série de questionamentos sobre o racismo no mundo da maquiagem e de cuidados com a pele.
Essa não é a primeira vez que a marca é criticada. Em outubro de 2023, ela lançou 15 tons do Date Night Skin Tint. No entanto, diversos influenciadores criticaram a marca por não ter uma diversidade de tons, mostrando uma falta de inclusão.
Golloria diz no vídeo: “Quando dizemos que queremos que vocês façam tonalidades para nós, não queremos dizer que [vocês] devem ir ao laboratório e peçam por um preto de show de minstrel […] O que queremos dizer é para vocês pegarem os marrons que já fizeram e criarem tons de base. Façam o que for necessário no laboratório para que seja um tom de marrom mais escuro.”
No Brasil, o jornalista, maquiador e ativista da pele, Tássio Santos, comenta que “hoje existe uma fórmula pronta do que as pessoas entendem como inclusão no mercado de maquiagem. O que é um prato cheio para racistas driblarem o jogo.”
Ao iG Delas , o fundador do canal Herdeira da Beleza afirma: “Não é possível uma base para pele de uma pessoa [ter apenas um pigmento]. A pele de uma pessoa não tem uma cor, a ciência explica, é biologicamente impossível a pele de uma pessoa ser composta somente por uma cor”. Segundo Tássio, são necessários ao menos quatro pigmentos para a construção de uma base “para todos os tons de pele negra que a gente tem aqui no Brasil”.
Colorimetria no mercado de cosméticos
Segundo Tássio, a maneira como os laboratórios trabalham a produção de produtos para pele negra precisa ser “revisitado para evoluir”. “O povo tá acostumado a usar, por exemplo, somente quatro tipos de pigmento [para fazer todos os tons] e depois a gente esbarrar com comentários na internet dizendo: ‘ai estava laranja demais’, ou ‘essa base está vermelha demais’. Porém, a solução para esse problema, muitas vezes, o time do laboratório fica um pouco mais rígido e acanhado de incorporar [as nossas ideias]”.
O jornalista trabalha prestando consultoria para marcas de cosméticos, focando na colorimetria de bases e pós, além de assuntos de proteção solar. Segundo ele, um ponto que dificulta no trabalho é a cota mínima de encomenda de produtos, que é difícil de negociar, e acaba fazendo com que as marcas optem por fazer apenas produtos que tenham grande volume de saída.
Casos como o da Youthforia são vistos por Tássio como um reforço de estereótipos: “A marca vai lançar uma base totalmente branca e vai vender como se fosse para pele albina? A gente sabe que a comunidade albina também sofre com essa falta de diversidade do mercado. Outro exemplo, uma base totalmente amarela e colocar ele para vender como se fosse para pessoas asiáticas?”
“Há anos a gente vem falando o quanto que o racismo pode ser reproduzido através também de marcas de maquiagem, No meu livro, inclusive, eu falo o quanto esse universo da beleza e, principalmente, que as marcas de maquiagem não estão livres de reproduzir o racismo”, diz Tássio, que é autor do livro “Tem minha cor? Quando se maquiar se torna um ato político”.
No livro, Tássio discute de uma forma mais séria os problemas da indústria de cosméticos, tentando propor soluções para os episódios “traumatizantes”.
“É uma extensão do que já faço no Herdeira da Beleza, não uma autobiografia. No entanto, algumas experiências pessoais acabam dando corpo ao assunto. No Capítulo 3, realizamos uma extensa pesquisa analisando o portfólio das marcas líderes de mercado no Brasil em categorias como base e pó. Essa investigação foi para compreender o significado por trás da disponibilidade de produtos para pessoas negras, como a base, essenciais para realçar sua beleza. Isso reflete não apenas questões estéticas, mas também aspectos históricos e sociais do Brasil. Essas reflexões são relevantes para diversos setores da sociedade, não apenas para a indústria da beleza.”
Veja as 20 bases indicadas por Tássio Santos para peles negras
Encare o espelho e se conheça
Tássio enfatiza a importância de se conhecer para acertar o tom da pele . Ele aconselha: “Pegue um espelho, encare sua imagem refletida e compreenda as nuances de cor e tom que compõem sua pele, identificando os pigmentos que se destacam por baixo do bege e do marrom”. A falta de representatividade nas telas dificulta essa conexão, pois, como ele observa, ‘a galera não está acostumada a se ver’. Ele incentiva as pessoas a se olharem e experimentarem diferentes bases até encontrarem a ideal.
“Beleza é poder. Você hoje poder se achar bonito, você se reconhecer como um belo, te dá segurança para conquistar outras coisas. Eu gosto muito desse caminho dos cosméticos para a gente repensar o que um dia já foi nosso, porque foi retirado. Recebo feedbacks de pessoas que falavam: ‘Eu não usava maquiagem porque eu usei e fiquei branca, minha cara ficou acinzentada’, e hoje ficou certinho ali com a pele dela, e que ela pode também pertencer a esse mundo”, diz Tássio ao afirma que o trabalho que tem na internet é como um curativo nos traumas de algumas pessoas.
Fonte: Mulher