“Foi uma insistência minha em buscar um diagnóstico correto e preciso”, diz a coordenadora pedagógica Fabiola Leonardo, mãe de Maria Clara, de 10 anos. Aos 2, a menina foi diagnosticada com a Síndrome de Phelan-McDermid, também chamada de PMS ou de Síndrome 22q13, uma condição rara que se dá por uma mutação no finalzinho do cromossomo 22, como se faltasse um pedacinho dele. Suas principais características são atraso no desenvolvimento global, ausência ou atraso de fala, deficiência intelectual, entre outros sinais.
Livia Loureiro, cientista genômica da Illumina, empresa de decodificação de informação genética, explica: “Há uma mutação, normalmente, é uma deleção [perda de um segmento do cromossomo], mas pode ser uma duplicação, uma translocação, qualquer modificação no finalzinho do cromossomo 22. Essa síndrome está envolvida com um gene localizado no finalzinho do braço longo do cromossomo 22, que é chamado de shank3. Do ponto de vista molecular, o que é importante a gente saber? A gente tem cópias de cromossomos no nosso genoma, então, a gente tem dois cromossomos 22. Essa perda do shank3, do finalzinho do cromossomo, está relacionada com apenas um cromossomo. Se você perde uma cópia, não precisa ser as duas, você tem uma diminuição na produção de proteína ali. E essa proteína é como se fosse um alicerce para os neurônios. Se a produção dela diminuir, você tem uma menor comunicação entre os neurônios”.
“Normalmente, nessa mutação, acontece algo que chamamos de ‘mutação de novo’. O que significa isso? Ela não está no pai e não está na mãe, ela acontece no embrião, o que a gente chama de pós-meiótico; ou pré-meiótico, quando ela acontece no óvulo ou no espermatozoide”, acrescenta a especialista. A PMS é considerada uma condição rara. Segundo dados da Phelan-McDermid Syndrome Foundation (PMSF), com sede nos Estados Unidos, havia cerca de 110 casos brasileiros confirmados até março de 2021.
O diagnóstico é feito através de um teste genômico, isto é, da análise de uma amostra de DNA. “O SUS não cobre, mas hoje, qualquer laboratório particular faz. […] Sem teste genômico, você não consegue fazer o diagnóstico. Você pode ter a suspeita, mas não fecha o diagnóstico de Síndrome de Phelan-McDermid”, explica a professora Maria Rita Bueno, do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco da USP (Genoma USP).
Síndrome de Phelan-McDermid vs Transtorno do Espectro Autista
Existem casos do Transtorno do Espectro Autista (TEA) que podem estar relacionados à PMS. O diagnóstico de autismo é clínico, ou seja, é feito a partir de uma avaliação do comportamento do paciente. Isso significa que uma parcela dos indivíduos com autismo pode carregar a Síndrome de Phelan-McDermid sem saber, porque não fez o teste genômico. “A gente tem um dado no nosso estudo que mostra que mais ou menos 1% dos casos de autismo tem Phelan-McDermid”, comenta Maria Rita. Em resumo: o número de pessoas com PMS no Brasil pode ser maior do que os registros. O contrário também é válido: existem pessoas no TEA que não têm essa mutação genética.
“Eu falo para todo mundo que tem autismo fazer algum tipo de teste. A PMS, muitas vezes, é diagnosticada com os primeiros testes que pedem, que é o cariótipo. Ele é uma análise da morfologia dos cromossomos, vai pegar, desenhar os cromossomos e ver qual partezinha está faltando ali. Se for uma deleção muito pequena, a deleção é a mutação mais comum, você não consegue ver com o cariótipo, somente deleções maiores, e aí a gente tem, por exemplo, o microarray “, complementa Livia.
Já o neuropediatra Hélio Van Der Linden adiciona: “Eu sempre digo que, em casos de ‘doença’ [síndrome, no caso da Síndrome de Phelan-McDermid] rara, as famílias costumam peregrinar bastante, anos a fio, para um diagnóstico correto. Chegar a um diagnóstico ajuda a explicar os sintomas, além de nortear o tratamento terapêutico, porque você pode focar, por exemplo, nas necessidades mais intensas do indivíduo”.
O caso de Maria Clara
“Ela sempre seguiu os marcos certinhos, andou com 1 ano e 2 meses… Só que eu percebia alguma coisa ali que não estava muito certo, apesar do pediatra falar que estava tudo normal. Mas ela sempre balbuciou muito, nunca apontou ‘Mamá’ para mim, ‘Papá’ para o pai, nada. Era assim: a mãe vendo, o pediatra falando que não, e o coração não querendo ver. E eu falava para o médico: ‘Ela não fala’. ‘Não, Fabiola, não falar até os dois anos é normal’. Não era normal, e tinha outras coisinhas, ela não respondia a alguns comandos simples, e quando ela aprendeu a andar, parecia que ela ia cair”, conta Fabiola Leonardo.
“Todos os exames dela davam normal, o cariótipo deu normal, outros exames também não davam nada. Eu fui em uma neurologista e foi uma questão que eu fiquei muito angustiada. Ela fez tipo um checklist : ‘Ela faz isso?’. ‘Sim’. ‘Não’. ‘Ela faz aquilo?’. ‘Sim’, ‘Não’. ‘Ah, então ela é autista’. Eu falei: ‘Bom, aqui eu não volto mais’. Não é se desfazendo de um diagnóstico, mas assim, a Maria Clara não fala, mas ela adora ficar no meio das pessoas. Ela tem, claro, uma timidez quando não conhece a pessoa, assim como a gente. A gente leva ela na Vila Belmiro, ela bate palma, ela comemora quando tem um gol. ‘Eu não sei o que a minha filha tem, mas autismo eu não acho que ela tenha, ou pelo menos só o autismo não…'”.
Fabiola, então, decidiu passar em outra neurologista. “Com essa, eu fiquei mais de uma hora no consultório. Tem três questões da Maria Clara: o olho dela, que é corridinho para o lado, o rim… Ela tem um rim maior do que o outro. A médica tirou toda a roupa dela para ver se ela não tinha nenhuma mancha relacionada com a questão renal. E [por último,] a fala”.
“Lá no consultório, ela já me disse que o olho da Maria Clara era paralisado, eu já tinha ido em dois oftalmos aqui em Santos, e eles estavam mandando eu colocar tampão no olho da menina. E ela falou: ‘Fabíola, eu quero que você faça um corte na ressonância, eu vou escrever aqui. Eles vão olhar o que está acontecendo nesse nervo do olho dela, porque o olho dela não se move’. E eu falei: ‘Gente, esse é o olho que a gente achava que era o bom’, porque o outro vai muito para o lado para suprir esse que não se move. Aí, nessa hora, foi que a gente entendeu o porquê, quando ela aprendeu a andar, parecia que ela ia cair”.
Maria Clara fez os exames em São Paulo e por lá também passou em um geneticista. “Eu falei: ‘Agora eu vou encontrar o que eu estou procurando’. Aí ele olhou para a secretária dele, olhou para outra médica que trabalhava com ele, e eles ficavam cochichando baixinho. ‘Você já fez esse exame?’. Eu falei: ‘Não’. ‘Então, faça e depois a gente volta a conversar’. Nós fizemos esse exame, chama microarray “.
“Quando a neurologista pediu os exames, ela já tinha me falado: ‘Fabiola, a gente começa a caminhar, porque, assim, o rim, a fala e o olho podem não ter relação nenhuma, mas eles também podem estar relacionados com alguma coisa’ […] O laudo do exame já dizia o nome da síndrome. Quando a gente descobriu, eu acho que a gente era a família de número 34 com o diagnóstico aqui no Brasil”.
O diagnóstico
Depois do diagnóstico fechado, mãe e filha retornaram ao geneticista, que disse: “Olha, você vai aprender muito mais nos grupos de WhatsApp entre os pais”. “A gente começou a vasculhar a internet e não achava nada. Quando achava, era um texto ou outro em inglês. E aí, o meu marido, nem lembro como, achou um vídeo na internet de uma das primeiras mães com filho que recebeu esse diagnóstico. Encontramos um grupo de WhatsApp das famílias aqui no Brasil, e é um grupo bastante ativo, tem muita troca”.
Clara não é diagnosticada com autismo, e sim com a Síndrome de Phelan-McDermid. “E aí depois a gente ficou sabendo que a fala, o rim, a questão do olho, tudo é relacionado com a síndrome”. Hoje, Maria Clara faz intervenções multidisciplinares: passa por psicóloga e fonoaudióloga, faz terapia ocupacional, equoterapia (terapia assistida por cavalos) e aulas de surf adaptado, estas últimas oferecidas pela prefeitura de Santos.
“Nós mudamos tem dois meses para uma casa, a gente morava em apartamento. Ela vai ser uma criança e vai precisar de espaço a vida toda. E o apartamento já não dava mais, ela pegava o patinete e ia da área de serviço até a sala com o patinete. Hoje, ela briga que eu mando ela entrar para tomar banho, porque quer ficar lá fora (risos)”.
Fabiola e outros pais lutam para ampliar a conscientização sobre a PMS
Em Santos, há somente Maria Clara com esse diagnóstico. Hoje, Fabiola batalha para que o conhecimento e o diagnóstico da PMS sejam mais acessíveis. Ela e outros pais montaram uma associação e, com a ajuda do Genoma USP, organizaram recentemente a I Conferência Nacional sobre a Síndrome de Phelan-McDermid.
“Eles [as pessoas com a síndrome] não têm uma característica física, que você olhe e diga: ‘Fulano, tem a Síndrome de Phelan-McDermid’, não. A gente tem criança acamada, criança que usa cadeira de rodas. Tem um rapaz que já até levaram o sangue dele para as pesquisas, porque ele tem apenas uma dificuldade motora em uma parte da mão, mas ele se formou em Ciências da Computação. Tem uns que falam, outros que não falam nada. A gente já até tentou medir o tamanho da perda dos cromossomos, mas não bate. O que tem que ser feito são os exames e aí cada vez mais ir buscando”.
O Genoma USP também está estudando casos chamados de “atípicos”, que, segundo a professora Maria Rita, são aqueles em que há alteração no cromossomo 22, na região que envolve o shank3, mas a pessoa não tem deficiência intelectual. “Tem um caso desse aqui no Brasil, e a gente está em busca de outros para ver se tem alguma coisa diferente nesse genoma que estaria ‘protegendo’ o indivíduo. Então, se for o caso de alguém, é muito importante que entre em contato com a gente”, finaliza ela.
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Fonte: Mulher