Mais de 4 mil crianças e adolescentes esperam para ser adotados no país, apesar de haver 34 mil interessados na fila de adoção. A conta não fecha, porque a maioria desses meninos e meninas tem mais de 7 anos de idade, enquanto grande parte dos adultos que estão na fila para adotar prefere crianças mais novas.
“Adoção tardia” é o termo usado para indicar a adoção de crianças e adolescentes mais velhos, que já sabem se comunicar e andar, possuem gostos e vontades próprias. Não existe uma idade certa para classificar uma adoção tardia; no geral, fala-se entre 8 e 17 anos. Há quem prefira evitar o uso do termo, sob o argumento de que nunca é tarde para adotar.
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Meu pai é o Estado, e minha mãe é a Prefeitura
“As pessoas têm essa visão de que adotar adolescente é arranjar problema”, afirma a professora Carina Henzel, mãe de Sharon, hoje com 19 anos de idade. Carina sempre sonhou em adotar, mas a preferência era, assim como na maior parte dos casos, por um bebê. “Eu nunca tive essa vontade de engravidar”.
Ela foi madrinha afetiva de Sharon por quatro anos, antes de ser mãe. À época, o apadrinhamento afetivo ainda era realizado de forma independente pelos abrigos. “E como meu plano era ser madrinha da Sharon, e o plano da Sharon era ser minha afilhada, as coisas foram acontecendo muito naturalmente”.
No ano seguinte, a adolescente chegou a iniciar um processo de aproximação com outro casal, o que acabou não dando certo. Durante o período, as duas foram aconselhadas a se afastarem, para que Sharon pudesse criar um novo vínculo. Mais tarde, Carina manifestou o desejo de pedir a guarda da então afilhada. “Ela disse: ‘Não, obrigada! Eu não quero sair do abrigo enquanto algum irmão meu ainda estiver aqui'”, conta a professora.
“O último irmão saiu no final de 2018. No começo de 2019, eu fui viajar e quando eu voltei, ela já tava na minha casa. E ela mal me deu oi, andava de um lado pro outro, tava muito nervosa e começou: ‘Eu pensei muito, e eu já sei que você vai me perguntar e não sei o que’. E a Sharon não era muito de falar. Ela foi despejando tudo, parou, respirou fundo e disse: ‘Eu tenho certeza do que eu vou te falar. Eu quero que você peça a minha guarda”.
Sharon tinha 15 anos recém completados. “É muito interessante esse processo de se tornar mãe e também de ver ela se tornar filha aos 15 anos. Quando a gente se torna mãe, a gente idealiza até a mãe que a gente vai ser: ‘Eu vou ser uma mãe incrível, minha filha vai agradecer que eu sou a mãe dela’. Vai nada, vai te achar um saco, ainda mais adolescente; eles estão eternamente insatisfeitos (risos)”.
Em dezembro de 2019, a família cresceu, e Sharon ganhou mais uma mãe: Daniela, a esposa de Carina. “A Dani é uma mãezona. Ela sempre diz que ama ser mãe e que é muito grata por eu tê-la presenteado com a Sharon”. Hoje, o casal espera mais duas filhas, também por adoção: Carina está habilitada para receber duas meninas, desta vez, entre 0 e 5 anos.
Adoção solo, tardia e interracial
“Existe muito tabu em relação à adoção tardia. As pessoas acham que as crianças vêm todas revoltadíssimas. De fato, uma criança mais velha já passou por muito mais coisas do que um bebê, como a dor do abandono… Convencionou-se que as crianças acima dos 7 anos seriam mais difíceis de lidar, não conseguiriam se adaptar. Eu acho exatamente o contrário: uma criança de 7 anos consegue se expressar melhor”, opina a advogada Romilda Duque Porto, mãe de Gustavo, hoje com 10 anos.
Romilda decidiu adotar o filho sozinha, em 2019, após passar por um divórcio. “Quando eu decidi ser mãe, eu pensei: ‘Eu não quero gestar, eu quero adotar’. Eu já era mãe, eu já me sentia mãe, só faltava encontrar meu filho”. Todo o processo foi bem rápido, admite ela. “Na sexta-feira, eu era uma mulher divorciada aos 40. E na segunda, era mãe de um menino de 7 anos”.
Faltavam 12 dias para Gustavo completar 7 anos. O limite de idade era a única exigência. “Quem procura uma criança ideal não vai achar em abrigo. Em abrigo, o que existe são crianças reais”, destaca a advogada. Gustavo chegou ainda com voz de bebê, pesava pouco mais de 10kg e comia com a mão, bem diferente do que Romilda idealizava.
Ela revela que sempre teve vontade de adotar. “Eu nunca me vi mãe de bebê. Foi inclusive uma coisa que eu tive que trabalhar na minha cabeça, porque eu pensava: ‘Como eu vou ser mãe se eu não tiver um bebê?’. Eu sempre pensava no meu filho em idade escolar, mais independente”, diz.
A conexão entre mãe e filho foi instantânea, segundo ela. “Muita gente olha pra mim e diz: ‘Menina, que sorte ele teve, né?’. E eu digo: ‘Não, que sorte eu tive’. Não fui só eu e a minha família que adotamos o Gustavo, o Gustavo também adotou a gente. A adoção é uma via de mão dupla, eu fiz acontecer do meu lado, e ele fez acontecer do lado dele”.
A advogada diz que até hoje algumas pessoas se questionam se ela não consegue engravidar. E também há aqueles que a veem como uma “santa”. “Eu não fiz caridade pra ninguém, eu só constituí minha família por uma via de parentalidade diferente”.
Onde comem três comem quatro, cinco…
Isabelle e Thiago Meireles já eram pais adotivos dos irmãos Wallace, André e Ketlen, quando decidiram aumentar a família. Casados desde 2014, os dois começaram a planejar logo nos primeiros meses de casamento a chegada do primeiro filho e decidiram, em comum acordo, que adotariam antes de ter um biológico.
Mas foi só em abril de 2017 que o casal decidiu se cadastrar na Vara da Infância de Betim (MG). O perfil que eles esperavam era de uma criança de até 10 anos, independentemente de sexo ou raça, podendo ter um irmão. Como a preferência era por crianças mais velhas – ao contrário do que normalmente acontece -, o processo correu mais rápido do que imaginavam e, no mês seguinte, iniciaram-se as entrevistas.
O fórum viu em Isabelle e Thiago a possibilidade de ampliar o perfil desejado e sugeriu que eles conhecessem as três crianças, que na época, tinham 7, 9 e 12 anos. “A gente pensou: ‘Eles estão loucos, né? Como assim três crianças?'”, confessa Isabelle. Mas mesmo com a certeza de que iriam recusar a proposta, decidiram fazer uma visita ao abrigo.
Em uma semana tudo mudou. “Eu lembro de chorar muito, pensava: ‘Eles vão ficar no abrigo até fazer 18 anos’. Claro que essa não deve ser a motivação pra ninguém, mas me doía muito”, comenta ela. “Eu fui pro meu canto, o Thiago foi pro dele. Não tocamos mais no assunto. E quando chegou perto do dia da nova reunião, o Thiago virou e falou: ‘E aí? Eu quero adotar’, eu falei: ‘Eu também!'”.
Foi só em setembro daquele ano que o casal recebeu a guarda para fins de adoção. Mas só em maio de 2019 que Wallace, André e Ketlen passaram a ser legalmente seus filhos. “Não foi um processo que dependeu só de mim e do Thiago. Os três sempre manifestaram seus desejos. E isso é muito legal na adoção tardia, porque você consegue entender se eles realmente querem ser adotados, conversar, construir vínculos juntos”.
À essa altura, os planos de ter um filho biológico já tinham caído por terra. Três filhos é o que cabe em um carro. Isabelle então passou a fazer parte do GAABE ( Grupo de Apoio à Adoção de Betim). Foi quando conheceu Naiara, que à época, tinha 17 anos e 10 meses de vida. Ao completarem 18 anos, os jovens são desacolhidos.
Isabelle e Thiago cogitaram apadrinhá-la. Mas não era suficiente. “Desde o nosso primeiro encontro com a Naiara, já sentimos algo diferente. E na primeira vez que ela foi em casa, na hora de ir embora, nós deixamos ela no abrigo e fomos sondar os nossos filhos para saber o que eles acharam. De cara, o Wallace solta: ‘Nossa, mamãe! A Naiara parece nossa irmã'”.
Naiara foi morar definitivamente com os pais em 29 de novembro de 2019, no aniversário de Isabelle. A pandemia acabou atrapalhando a documentação, e o casal ainda aguarda a papelada oficial. A família estava completa, ou pelo menos, era o que achavam. Adotar mais um filho nem passava pelos planos… Mas o casal se deparou com a notícia de que Flávio (13), amigo das crianças, passou por mais uma tentativa frustrada de adoção e teve de voltar ao abrigo.
Como o adolescente já tinha passado por quatro tentativas, o casal não queria que ele soubesse logo de cara do desejo de adotá-lo. Decidiram apadrinhá-lo até que ele mesmo manifestasse se queria ou não ser adotado. “Sempre foram os adultos que decidiram por ele. E nessa angústia de vê-lo numa família, longe do abrigo, não levaram em consideração se ele queria aquela família”, desabafa a mãe.
Agosto de 2020 foi significativo, conta ela. Flávio fala para Isabelle: ‘Vontade de chamar você de mamãe e o Thiago de papai’. Em maio de 2022, acontece a audiência de adoção. E a família Meireles precisou comprar um carro de sete lugares.
Fonte: Mulher