O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, atuou discretamente para evitar um golpe à democracia brasileira durante a transição entre o governo de Jair Bolsonaro (PL) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
No domingo (21), Biden anunciou sua desistência da corrida pela Presidência dos Estados Unidos . Com o fim de sua campanha, a expectativa é de que os democratas escolham Kamala Harris , a atual vice-presidente, para ser líder da chapa.
Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos em 20 de janeiro de 2021. Ele foi o sucessor de Donald Trump, um republicano que, assim como o presidente brasileiro da época, Jair Bolsonaro, é considerado um líder da extrema-direita.
A eleição de Biden marcou uma mudança importante nas relações entre os países, sobretudo pelo fato de Bolsonaro ter estabelecido uma afinidade com Trump devido às suas semelhanças ideológicas e políticas.
Eleições norte-americanas de 2020
Durante a pandemia de Covid-19, o governo Bolsonaro perdeu o apoio da direita moderada devido à sua gestão controversa da pandemia. Já naquela época, havia a incerteza sobre a sua reeleição.
A eleição de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos tornou o cenário ainda mais desafiador para Bolsonaro, uma vez que o democrata representava uma liderança oposta ao estilo autoritário de Trump.
Nesse meio tempo, então, Bolsonaro adotou diversas táticas do republicano. Uma delas foi questionar, sem provas e por diversas vezes, o resultado das eleições de 2018 no Brasil, ao afirmar que havia vencido no primeiro turno. Dessa forma, o ex-capitão conseguiu manter a sua base mais fiel mobilizada em meio à pressão nacional e internacional.
Sendo assim, não demorou para que Bolsonaro se distanciasse de Biden. O ex-capitão só reconheceu a vitória do democrata um dia após a confirmação do resultado pelo Colégio Eleitoral, apesar de as estimativas e previsões apontarem, em sua totalidade, para a sua vitória.
A postura de Bolsonaro foi avaliada como um enfrentamento ao resultado das eleições norte-americanas, mas gerou pouca repercussão.
Comentários sobre a invasão ao Capitólio
Foi só após a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, que Bolsonaro passou a ousar nas suas críticas ao resultado das eleições dos EUA. Um dia após o episódio e, novamente, sem apresentar provas de fraudes na eleição americana e na brasileira, o ex-capitão disse que a invasão se deu pela falta de transparência no pleito dos Estados Unidos.
“Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse Bolsonaro a apoiadores no Palácio do Alvorada.
Com a aproximação das eleições brasileiras e as pesquisas apontando um resultado cada vez mais incerto, Bolsonaro questionava abertamente o sistema eleitoral no Brasil.
“O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora, basicamente qual foi o problema, a causa dessa crise toda: falta de confiança no voto. Ninguém pode negar isso daí, então a falta de confiança levou a esse problema que está acontecendo lá. E aqui no Brasil se tivermos o voto eletrônico em 22 vai ser a mesma coisa, a fraude existe”, apontou.
Biden não reagiu publicamente à fala de Bolsonaro. Mas, ao que tudo indica, o líder democrata ficou preocupado com a possibilidade do ex-capitão não respeitar ou até impedir as eleições no Brasil.
Articulação partiu do Brasil
Ao contrário do que é justificado pela ala bolsonarista, o governo de Joe Biden não interferiu de forma direta nas eleições brasileiras. Na verdade, desde 2021, a preocupação com a possibilidade de um golpe ganhou força à medida que figuras políticas e setores da sociedade civil identificaram paralelos entre o governo Bolsonaro e a administração Trump nos EUA, especialmente após a invasão do Capitólio no início do ano.
Essa percepção levou a uma mobilização intensa de diversos agentes nacionais, envolvendo ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), grupos de ativistas, embaixadores e entidades de direitos humanos.
Um dos órgãos mais importantes dessa mobilização foi o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que realizou campanhas para atestar a confiabilidade das urnas e a integridade do sistema eleitoral, que eram frequentemente atacados por Jair Bolsonaro.
Além disso, diplomatas e figuras do judiciário brasileiro atuaram de forma discreta para alertar a comunidade internacional sobre os riscos de um golpe no Brasil. A estratégia irritou Bolsonaro, que logo realizou uma reunião com embaixadores para atacar o sistema eleitoral, mas que não surtiu efeitos positivos para sua campanha.
Atuação silenciosa pela democracia
A gestão de Biden atuou para garantir que o processo eleitoral brasileiro funcionasse nas eleições presidenciais de 2022, segundo o jornal britânico Financial Times. De acordo com fontes da publicação, houve uma campanha de pressão silenciosa do governo dos EUA para instar os líderes políticos e militares brasileiros a respeitar a democracia brasileira.
“Foi quase um ano de estratégia, sendo feito com um objetivo muito específico, não de apoiar um candidato brasileiro em detrimento de outro, mas muito focado no processo (eleitoral), em garantir que o processo funcionasse”, disse à época o ex-funcionário do departamento de estado e ex-embaixador no Brasil Michael McKinley.
O ex-funcionário do departamento de estado Tom Shannon afirmou ao Financial Times que a estratégia começou com a visita do conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, Jake Sullivan, ao Brasil em agosto de 2021.
Segundo Shannon, apesar de um comunicado da embaixada ter dito que a visita “reafirmou a relação estratégica de longa data entre os Estados Unidos e o Brasil”, Sullivan deixou a reunião com Bolsonaro preocupado, conta Shannon.
“Bolsonaro continuou falando sobre fraude nas eleições americanas e continuou entendendo sua relação com os Estados Unidos nos moldes da sua relação com o presidente Trump”, disse Shannon.
“Sullivan e a equipe que o acompanhou saíram pensando que Bolsonaro era totalmente capaz de tentar manipular o resultado das eleições ou negá-lo como fez Trump. Portanto, pensou-se muito em como os Estados Unidos poderiam apoiar o processo eleitoral sem parecer interferir. E é assim que começa”, concluiu.
Reunião com embaixadores
Em 18 de julho de 2022, quando já era pré-candidato à reeleição, Bolsonaro se reuniu com embaixadores de diversos países no Palácio da Alvorada para uma apresentação em que repetia suspeitas já desmentidas por órgãos oficiais sobre a lisura do sistema eleitoral brasileiro. Além disso, aproveitou o evento para atacar o então adversário Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que à época liderava as pesquisas de intenção de voto.
No dia seguinte, a assessoria de comunicação da Embaixada dos Estados Unidos (EUA) publicou nota em que afirmava que as eleições brasileiras são um exemplo a ser seguido por outros países.
“As eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”, diz a nota.
“Como já declaramos anteriormente, as eleições do Brasil são para os brasileiros decidirem. Os Estados Unidos confiam na força das instituições democráticas brasileiras. O país tem um forte histórico de eleições livres e justas, com transparência e altos níveis de participação dos eleitores”, acrescenta.
“Estamos confiantes de que as eleições brasileiras de 2022 vão refletir a vontade do eleitorado. Os cidadãos e as instituições brasileiras continuam a demonstrar seu profundo compromisso com a democracia. À medida que os brasileiros confiam em seu sistema eleitoral, o Brasil mostrará ao mundo, mais uma vez, a força duradoura de sua democracia”, conclui o comunicado enviado aos jornalistas pela unidade diplomática americana.
Reconhecimento de Lula
Pouco mais de meia hora após o anúncio da vitória de Lula (PT) pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Casa Branca emitiu uma nota curta em que parabenizava o petista e afirmava que as eleições brasileiras foram justas —ao contrário de alegações feitas antes do pleito por Bolsonaro.
“Envio meus parabéns a Luiz Inácio Lula da Silva por sua eleição como o próximo presidente do Brasil após eleições livres, justas e críveis. Estou ansioso para trabalharmos juntos para continuar a cooperação entre nossos países nos próximos meses e anos”, diz a nota enviada pelo presidente americano.
O rápido reconhecimento de Lula como presidente eleito inflamou o sentimento negativo da ala bolsonarista por Biden. Isso se intensificou após 70 países enviarem seus representantes para Brasília na posse – não como um cumprimento a Lula, mas como um recado de união contra a extrema-direita.
8 de janeiro
Logo após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, Biden usou as redes sociais para se pronunciar contra os ataques às sedes dos três poderes, mais uma vez reforçando sua defesa à democracia brasileira.
“Condeno o atentado à democracia e à transferência pacífica de poder no Brasil. As instituições democráticas do Brasil têm todo o nosso apoio e a vontade do povo brasileiro não deve ser abalada. Estou ansioso para continuar a trabalhar com Lula”, disse Biden na ocasião, em mensagem divulgada nas redes sociais.
No dia seguinte ao ataque golpista, Biden ligou para Lula. Em comunicado conjunto, os governos do Brasil e dos EUA disseram que “o presidente Biden transmitiu o apoio incondicional dos Estados Unidos à democracia do Brasil e à vontade do povo brasileiro, expressa nas últimas eleições do Brasil, vencidas pelo presidente Lula”,
Fonte: Internacional