Um ano de guerra. O 24 de fevereiro de 2022 não traz boas lembranças aos ucranianos. As marcas do dia atingem o país até hoje. Nesta sexta-feira, a guerra com a Rússia completa seu primeiro aniversário, com saldos positivos para o Exército da Ucrânia, mas negativo para a população.
Em um ano, a guerra deixou 42,2 mil mortos, 56,7 mil feridos e outros 15 mil desaparecidos, segundo dados da Agência Reuters. Em compensação, Kiev conseguiu evitar o domínio russo sobre suas terras e, agora, mantém a disputa pela região de Donbass, tomada pelo Exército de Putin.
As relações entre Rússia e Ucrânia já não era das melhores desde 2014, com a saída de Viktor Yanukovych da presidência ucraniana e a série de revoluções pró-Europa em Kiev. Do outro lado do país, as regiões de Luhansk e Donetsk já faziam movimento em favor da separação da Ucrânia, enquanto os russos aproveitaram a onda de revoluções para anexar a Crimeia ao seu território.
As disputas políticas se intensificaram no decorrer dos anos, mas a vitória de Volodimyr Zelensky para a presidência da Ucrânia acentuou as disputas. Zelensky queria afunilar sua relação com países europeus e os Estados Unidos e via essa ideia como uma oportunidade de tirar o país da sombra da Rússia e fortalecer as relações comerciais com países desenvolvimentos.
“A Ucrânia tem processos eleitorais com trocas frequentes de lideranças. Hora é mais pró-Rússia, hora mais pró-ocidente. O processo ucraniano começa a ter uma inflexão com Primavera Ucraniana e a invasão a Crimeia. Petro Poroshenko, presidente ucraniano na época, está mais pró-ocidente. Quando há eleições em 2019, ambos os candidatos [Poroshenko e Zelensky] sinalizaram para a Rússia que estavam seguindo para caminhos favoráveis ao ocidente”, afirma Alexandre Pires, professor de Relações Internacionais do Ibmec-SP.
“A guerra começou por causa o expansionismo da Europa em seu bloco comercial e as pretensões da Otan em manter seu poderio bélico. A Rússia viu nas ideias uma brecha para que os EUA colocassem armamentos na Ucrânia, o que, para eles, é um passo para invadir o território russo”, completa José Niemayer, professor de Relações Internacionais do Ibmec-RJ.
Na teoria, a ideia era boa e tinha forte adesão da União Europeia. Os anos foram passando e as negociações foram se intensificando, até que os Estados Unidos sugeriram a entrada dos ucranianos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar do ocidente, o que autorizaria o Exército norte-americano a criar bases na região.
Esse foi o estopim para que Putin enviasse parte do exército para as fronteiras com a Ucrânia. Uma parte dos soldados chegou próximo ao território vizinho através da Bielorrússia.
“Já vinha em curso, desde 2021, um processo de aumento de contingente militar russo próximo às fronteiras com a Bielorrússia. Esse movimento foi bem parecido da invasão e conquista da Crimeia”, conta Pires.
Enquanto o presidente russo preparava seu armamento, a Europa se movimentava para segurar os anseios da Rússia. O chanceler alemão, Olaf Scholz, e o presidente da França, Emmanuel Macron, chegaram a se reunir com Putin e pediram para que ele retirasse as tropas. Inicialmente, o presidente russo não se opôs, mas mudou de ideia dias depois.
Em 21 de fevereiro, Putin usou a região do Donbass para atacar a Ucrânia politicamente. Em um pronunciamento, o Kremlin reconheceu a independência das regiões de Donetsk e Luhansk e enviou tropas para uma “manutenção de paz” para as duas regiões, que, em sua maioria, adotam o russo como idioma oficial.
“O ponto importante é que o conflito já estava em curso na região leste do país. A Rússia já abastecia grupos separatistas com armamento, enquanto alguns diziam serem membros do exército russo”, completa o professor do Ibmec-SP.
O comunicado gerou reboliço entre Europa e os Estados Unidos, que tentaram encontrar formas de segurar Putin, enquanto o Conselho de Segurança da ONU já se movimentava para uma reunião de emergência.
Na madrugada do dia 24 de fevereiro, às 5h no horário local, Putin faz um pronunciamento autorizando a “operação militar” russa na Ucrânia. O presidente russo ainda ameaçou “quem tentar atrapalhar o trabalho do Exército russo”, em clara mensagem aos países ocidentais.
Às 5h30, primeiras explosões são registradas em Mariupol e Kiev. Era o início da maior guerra do século.
Chegada a Kiev e tomada de Chernobyl
A Rússia tinha uma tentava clara: dominar o território ucraniano e, quem sabe, anexar o país novamente ao seu território. Para isso, Putin sabia que atacar apenas o leste da Ucrânia seria nulo em seus objetivos. Era necessário atacar Kiev, a sede do governo da Ucrânia.
Antes da invasão, as tropas russas foram enviadas à Bielorrússia, país que faz divisa com o oeste russo e o norte ucraniano. Ainda no dia 24, o exército de Putin avançou pela região de Chernobyl, fazendo o seu primeiro ataque na região no dia seguinte.
Embora já tivesse bombardeado parte de Kiev no primeiro dia do conflito, os russos ainda não tinham homens para manter os ataques na região.
Os bombardeios continuaram até que a chegada dos russos ao aeroporto de Gostomel, cidade ao lado de Kiev, para criar uma base de operações para Putin. Para tomar a região, o exército da Rússia destruiu um dos maiores símbolos da Ucrânia: o Antonov-An225 Mriya, o maior avião do mundo, operado pela Antonov Airlines.
“Ele, claramente, tentou dominar a Ucrânia. Essa seria a segunda fase da guerra. As tropas russas queriam tomar conta dos ucranianos e começaram a invadir com uma força muito maior do que o esperado”, afirma Niemayer.
Especialistas acreditam que Putin tinha uma tentativa clara: matar Volodymyr Zelensky e tomar Kiev. O Kremlin acreditava que não havia resistência dos ucranianos. Ledo engano.
“A Rússia manteve suas tropas rumo à Kiev para matar Zelensky. Eles achavam que ele sairia do país ou até mesmo se renderia. Quando viram o contrário, foram obrigados a recuar”, ressalta Pires.
Com as ajudas de países como Alemanha e França, o exército de Zelensky avançou e conseguiu recuperar a região de Gostomel e Chernobyl, provocando derrotas importantes e o recuo das tropas russas.
Reboque para os russos e combustível zerado
Já no terceiro dia de invasão já foi possível perceber um defeito no Exército russo: a falta de planejamento. Diversos tanques ficaram sem combustível, o transporte de soldados foi prejudicado e insumos médicos e alimentares não chegavam às tropas em combate.
Esse foi mais um ponto de proveito para os ucranianos. Quando um tanque russo era encontrado parado, ou era abatido, ou até mesmo roubado pelo exército de Zelensky.
Outro fator que assustou Putin foi o poderio ucraniano para abater seus aviões. Centenas de aeronaves russas foram destruídas, o que prejudicou os planos da Rússia em tomar o país vizinho.
Perdido, Putin tentava encontrar alternativas para reorganizar sua tropa. Após as tentativas frustradas de atacar Kiev, Putin resolveu focar no leste da Ucrânia, onde tem mais apoio, principalmente na região do Donbass.
As tropas russas destinaram deus armamentos para Kharkiv e Kherson, duas das cidades mais importantes economicamente para os ucranianos. Mas as novas ofensivas de Zelensky mudaram o cenário e afastaram as tropas russas para o leste do país.
Sanções não intimidaram
Desde o início da guerra, centenas de sanções foram aplicadas à Rússia pelos Estados Unidos e União Europeia. Além do fechamento do espaço aéreo, os blocos proibiram empréstimos de bancos aos russos e excluíram instituições financeiras do sistema bancário internacional, encerraram as operações do Banco Central Russo nos países e bloquearam as transmissões de mídias russas.
Houve também sanções financeiras, como congelamento de depósitos bancários, imóveis, suspensão de acordos comerciais, financiamentos em pesquisas, suspensão de financiamento do programa aeroespacial russo e até tentativas de tirar a Rússia do Conselho de Segurança da ONU.
As medidas, porém, não surtiram o efeito esperado. Enquanto europeus e norte-americanos esperavam por uma desistência da Rússia, Putin manteve os ataques a todo vapor.
“A China manteve silencio em relação à guerra. Porém, eles mantiveram um papel fundamental para a Rússia. Enquanto os russos sofriam as sanções, os chineses entregavam mantimentos para sustentar as sanções contra Putin”, afirma Niemayer.
As mensagens do Kremlin revoltaram a União Europeia, que resolveu “comer pelas beiradas” e passou a apresentar sanções contra empresários russos. Bilionários tiveram seus veículos, imóveis e barcos apreendidos, ficaram proibidos de possuir empresas nos países e tiveram seus contratos com a União Europeia encerrados.
As sanções também atingiram o esporte. A UEFA proibiu times russos de participarem de competições oficiais, a FIFA seguiu a organizadora de competições europeia, obrigou Roman Abramovich a vender o Chelsea (Inglaterra) e até o piloto russo da Fórmula 1, Nikita Mazepin (Hass), deixou a equipe após os ataques de seu país contra a Ucrânia.
Mesmo com as tentativas, a Rússia fechou os olhos e manteve a ofensiva na Ucrânia.
A guerra atualmente
Com grandes baixas, o exército russo manteve seu domínio na região leste da Ucrânia, principalmente na região separatista de Donbass. Já o Exército ucraniano tenta segurar a ofensiva de Putin em Kherson.
Porém, as disputas devem ganhar novos capítulos nas próximas semanas. Na terça-feira (21), Vladimir Putin fez ameaças de estudos nucleares, caso os Estados Unidos fizessem o mesmo.
“Há interesses na região leste da Ucrânia. Ela é a mais industrializada da região. O outro lado é mais agrícola. A região leste é onde há siderúrgicas, indústrias, gás, então há a possibilidade dos dois países de se recuperarem financeiramente após a guerra”, explica Alexandre Pires.
“Outro ponto do interesse russo pela região leste é tentativa de resolver um problema importante. A Crimeia era uma conquista russa, porém a Crimeia teve o abastecimento de água cortada e não tem água doce própria. Ela depende justamente daquela região da ponte terrestre de Mariupol. Como houve o conflito, esse abastecimento foi cortado. Havia uma estratégia para a Rússia em conquistar Mariupol e reabastecer o local”, completa.
Já a Ucrânia, tenta buscar apoio do Ocidente para armamentos, tanques e aviões militares para compor sua tropa. Estados Unidos e Alemanha já enviaram tanques ao governo de Zelensky, enquanto a Polônia colabora com o treinamento dos soldados ucranianos.
O presidente norte-americano, Joe Biden, em visita surpresa à Kiev, anunciou um pacote de US$ 500 milhões em ajuda militar à Ucrânia. Ainda não há detalhes de como será essa ajuda.
“As ajudas dos países do ocidente têm incomodado muito Moscou. Isso poderá causar uma quarta fase da guerra. Precisamos ver como a Rússia vai receber essas ajudas. Se ele responder com ataques aos países próximos, fora a Ucrânia, a guerra ganhará outro patamar”, afirma Niemayer.
Fonte: IG Mundo