Guerra de narrativas cerca projeto de anistia a réus do 8 de Janeiro

Política

Condenada bolsonaristas pede perdão, esquerda clama por punição

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Uma intensa guerra de narrativas ganhou força no Brasil em torno do projeto de anistia para os envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. De um lado, parlamentares e apoiadores da extrema-direita – aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro – mobilizam a campanha “Anistia Já”, buscando perdoar manifestantes condenados e até o próprio Bolsonaro. Do outro, partidos de esquerda e setores do governo respondem com a palavra de ordem “Golpistas na cadeia já”, defendendo que os responsáveis pelos atos golpistas sejam punidos exemplarmente. O embate extrapolou o Congresso e chegou às ruas e redes sociais, com direito a batom como símbolo da disputa, e ocorre em meio a pesquisas que indicam apoio popular às condenações dos envolvidos.

Projeto de anistia inclui manifestantes e Bolsonaro

No centro do debate está um projeto de lei de anistia articulado por parlamentares bolsonaristas no Congresso Nacional. A proposta, capitaneada pelo PL (Partido Liberal) de Bolsonaro, pretende perdoar todos os crimes relacionados aos ataques de 8 de janeiro – incluindo vandalismo, conspiração golpista e incitação nas redes sociais – livrando de punição desde os manifestantes presos até possíveis financiadores e apoiadores dos atos. Na prática, segundo análises da imprensa, o projeto beneficiaria também Bolsonaro, hoje réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por suposta incitação ao golpe, e que poderia escapar de consequências legais caso a anistia seja aprovada.

Líderes da oposição afirmam ter mobilizado sua base em favor da medida. Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder do PL na Câmara, tenta coletar assinaturas para votar a anistia diretamente no plenário, driblando a tramitação em comissões. Nos últimos dias, deputados bolsonaristas chegaram a obstruir votações e até cancelar reuniões de comissões em protesto, tentando pressionar a pauta da anistia  . Ainda assim, a resistência é grande: o novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), sinalizou que o tema não é prioritário e orientou líderes partidários a não endossarem o requerimento de urgência. Lindbergh Farias (PT-RJ), líder do PT, chegou a declarar a proposta “derrotada” na semana, diante da falta de apoio suficiente . A base governista, ao lado de partidos de esquerda, fechou questão contra a anistia, enquanto bolsonaristas insistem em ampliar o perdão inclusive para Bolsonaro, que já foi punido com perda de direitos políticos até 2030 em outro processo. Nos bastidores, o embate também reflete uma queda de braço entre Congresso e Judiciário – deputados insatisfeitos com a atuação firme do STF veem na anistia uma forma de enfrentar o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelos processos do 8/1, e de retaliar medidas do governo Lula consideradas impopulares  .

Caso “Perdeu, mané”: manifestante deixa a prisão

Estátua da Justiça em frente ao STF, pichada com a frase “Perdeu, mané” durante a invasão de 8 de janeiro de 2023. (Foto: Joedson Alves/Agência Brasil)

Um dos episódios que inflamam a narrativa bolsonarista é o da manifestante que pichou “Perdeu, mané” na estátua A Justiça, em frente ao STF, durante a invasão de 8 de janeiro. A frase — originada de uma fala do ministro do STF Luís Roberto Barroso a bolsonaristas em 2022 — tornou-se símbolo da derrota do movimento golpista e acabou literalmente marcada no monumento. A autora, a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, 39, foi presa em flagrante naquele dia e se tornou ré em cinco crimes, entre eles tentativa de golpe de Estado e dano ao patrimônio público. Após mais de dois anos detida preventivamente, Débora obteve libertação provisória na última semana: em 28 de março, o ministro Alexandre de Moraes concedeu a ela prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica, acolhendo em parte um pedido da Procuradoria-Geral da República. Moraes considerou o longo tempo de prisão preventiva e o fato de Débora ter dois filhos pequenos para autorizar que ela aguarde em casa o fim do julgamento – que está pausado devido a um pedido de vista do ministro Luiz Fux. Ela deverá cumprir prisão domiciliar em Paulínia (SP), com monitoramento e proibição de usar redes sociais ou dar entrevistas, sob pena de voltar ao presídio  .

A decisão provocou reações imediatas. Bolsonaro e seus aliados viram o gesto do STF como um sinal de enfraquecimento. O ex-presidente classificou a medida como um “recuo tático” de Moraes, alegando que a punição de 14 anos de prisão cogitada para Débora seria exagerada . Parlamentares bolsonaristas aproveitam o caso para pedir compaixão e indulgência aos participantes dos atos. Já do lado oposto, políticos de esquerda ponderam que a liberdade provisória não anula a gravidade do crime. “Os bolsonaristas estão usando Débora para gerar comoção… Não pode haver anistia, porque a impunidade deixa um recado de que é possível dar golpe”, afirma a deputada Luciene Cavalcante (PSOL-SP), defendendo que os envolvidos no 8/1 continuem respondendo na Justiça. Integrantes do STF e especialistas também enfatizam que escrever “perdeu, mané” naquele contexto foi mais que uma pichação inocente – representou uma afronta direta aos Poderes constituídos e à ordem democrática, em meio a uma tentativa de subversão institucional.

“Batom” nas redes: de “Anistia Já” a “Golpistas na cadeia”

A batalha política ganhou tintas literais nas redes sociais, onde o batom vermelho se transformou em emblema dessa disputa. Inspirados pelo caso da estátua pichada com maquiagem, apoiadores de Bolsonaro iniciaram uma campanha online em que escrevem “Anistia Já!” com batom, em cartazes, espelhos ou até no próprio rosto, como forma de protesto. A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro entrou em campo: em um vídeo publicado nas redes, ela e outras aliadas aparecem com camisetas brancas estampadas com a frase “Anistia Já” em letras que imitam batom, conclamando mulheres bolsonaristas a irem às ruas levando seus batons como símbolo de luta . A ideia era transformar a maquiagem – um item associado ao universo feminino – em símbolo de resistência contra as prisões de 8 de janeiro. “A razão da anistia é deixar essa história que a esquerda insiste em resgatar para trás. O governo Lula é atrapalhado, falar em tentativa de golpe é cortina de fumaça”, discursou a deputada Rosana Valle (PL-SP), em defesa do perdão aos manifestantes.

A resposta do campo progressista veio à altura, reapropriando o símbolo. Militantes e parlamentares de esquerda passaram a postar imagens com batom vermelho exibindo dizeres opostos, como “Sem anistia” e “Golpistas na cadeia já”. Em um ato realizado em Brasília para marcar o aniversário do golpe militar de 1964, lideranças do PT incentivaram a participação popular nas ruas e sugeriram que o mesmo batom fosse usado para lembrar as milhares de mulheres encarceradas no Brasil, destacando que a lei deve valer para todos. Personalidades como o advogado Marco Aurélio de Carvalho, do Grupo Prerrogativas, afirmaram que o batom agora deve simbolizar a realidade de um “sistema penitenciário medieval” que mantém muitas mulheres presas – em contraste à mobilização da direita por uma mulher específica. A mensagem da esquerda: não se trata de perseguir uma pessoa, e sim de afirmar que não haverá perdão para atos golpistas. Enquanto hashtags como #AnistiaJá e #SemAnistia polarizam o debate no Twitter e Instagram, a “guerra do batom” escancara como até objetos cotidianos viraram instrumentos de narrativa política.

Maioria apoia punição aos atos antidemocráticos

Apesar do barulho nas redes, os dados apontam que a opinião pública tende a rejeitar a anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro. Uma pesquisa nacional do instituto Genial/Quaest, divulgada no início de abril, revelou que 56% dos brasileiros apoiam manter presos e punir os responsáveis pelos ataques às sedes dos Três Poderes, incluindo aí eventuais punições a Bolsonaro. Apenas uma minoria defende soltá-los: 18% acham que os detidos nem deveriam ter sido presos, e 16% acreditam que já ficaram tempo demais na cadeia e poderiam sair – outros 10% não souberam responder. Em outras palavras, mais de metade da população é contra qualquer anistia ou perdão neste caso.

O levantamento também expôs a divisão por preferência política. Entre os eleitores de Lula, 77% defendem que os acusados continuem presos e cumpram pena, reforçando o coro de “sem anistia”. Já entre os que votaram em Bolsonaro, a maioria relativa (36%) acha que os detidos deveriam ser soltos por nunca terem cometido crime, refletindo o discurso de perseguição política, enquanto 32% concordam que continuem presos. A figura do ex-presidente igualmente aparece no radar da população: 49% dos entrevistados acreditam que Bolsonaro teve participação no planejamento da intentona golpista, e 52% consideram justa a decisão do STF de torná-lo réu pelos acontecimentos. Mesmo divididos sobre se ele acabará preso de fato – 46% acham que sim, contra 43% que não –, os brasileiros mostram, em geral, pouca simpatia pela ideia de anistiar quem atentou contra a democracia.

Repercussão: pressão nas ruas e no Congresso

Passados quase dois anos dos ataques, o tema da anistia mantém elevada a tensão política entre direita e esquerda. No último mês, a oposição bolsonarista intensificou a mobilização nas ruas para tentar mostrar força popular à causa da anistia. No dia 16 de março, um ato na praia de Copacabana, no Rio, reuniu apoiadores vestidos de verde e amarelo pedindo liberdade aos “patriotas” presos. Já neste domingo (6 de abril), Bolsonaro e aliados convocaram uma manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, em defesa do projeto – o próprio ex-presidente participou de um “esquenta” com deputados pela manhã, num gesto de apoio. “Essa manifestação é vital para pressionar o Legislativo”, afirmou a deputada bolsonarista Bia Kicis (PL-DF), uma das organizadoras do ato, ressaltando a expectativa de que grande adesão popular faça o Congresso reconsiderar a anistia  . Nos bastidores, Bolsonaro teria dito confiar que “a anistia tem força nas ruas” e pode avançar se a base dele mostrar capacidade de mobilização.

Até agora, porém, os protestos tiveram impacto limitado. O evento de São Paulo é visto como um teste decisivo de fôlego para o movimento, especialmente após um protesto anterior, no Rio de Janeiro, ter tido adesão modesta, frustrando os organizadores. Paralelamente, lideranças governistas seguem firmes no discurso contrário. Integrantes do governo Lula e de partidos de esquerda aproveitam eventos públicos para reforçar o lema “Sem anistia”, argumentando que perdoar os golpistas minaria a democracia e desrespeitaria as instituições que eles depredaram. Em sessões no Congresso, deputados do PT, PSOL e outros partidos pró-governo têm reiterado que não há negociação possível nesse ponto: os culpados pelos atos antidemocráticos devem responder na Justiça e cumprir suas penas.

No Parlamento, o futuro do projeto de anistia permanece incerto. A proposta segue travada na Câmara dos Deputados, sem previsão de votação. A oposição calcula ter pouco mais de 160 apoios formais – longe dos 257 necessários para aprovar um requerimento de urgência e levar o texto direto a plenário . Mesmo dentro do chamado Centrão (bloco de partidos moderados), o entusiasmo com a anistia esfriou diante da falta de consenso e do risco de desgaste público. Ainda assim, Bolsonaro e seus aliados prometem manter a pressão, seja via negociação política ou novas manifestações, ao longo do mês de abril.

Enquanto isso, a sociedade civil e entidades de defesa da democracia acompanham de perto. Protestos contra a anistia também ocorrem – ainda que de forma difusa – em universidades, movimentos sociais e coletivos como o Grupo Prerrogativas, que reúne juristas alinhados ao governo. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e organizações de direitos humanos já se manifestaram contra anistias indiscriminadas, lembrando que a Constituição de 1988 consolidou o Estado de Direito justamente para evitar a impunidade em casos de ruptura institucional.

A anistia para os atos de 8 de janeiro se tornou mais que uma questão jurídica: é um divisor político e simbólico. Para a extrema-direita bolsonarista, representa encerrar um capítulo incômodo e proteger seus líderes e militantes de condenações duras. Para a esquerda e setores democráticos, conceder perdão seria um perigoso precedente de impunidade que poderia incentivar novas aventuras golpistas no futuro. Com narrativas tão opostas, caberá ao Congresso Nacional decidir se cederá aos apelos de “paz” dos bolsonaristas ou se corroborará o clamor por justiça e respeito ao estado democrático de direito. Por ora, o país assiste a esse embate de slogans – nas tribunas, nas passeatas e até no espelho, em traços de batom – aguardando o desfecho de mais esse capítulo de sua história política recente.