Qual é a fronteira entre a paquera e o assédio? O que leva um assediador a acreditar que tem direito sobre o corpo do outro? A definição de assédio é coletiva ou individual? É preciso contato físico para se configurar assédio? Essas são perguntas que toda pessoa vítima ou aliada ao enfrentamento às violências contra meninas e mulheres pode ter feito a si mesma.
Em ocasiões como o Carnaval, este debate é ainda mais complexo, pois a questão abrange desafios como o receio das mulheres em enfrentar retaliações ou agressões por parte dos assediadores, a influência da pressão social do grupo de amigos, e a arraigada concepção cultural que sugere que, ao participar de uma festa carnavalesca, a mulher está à disposição e, por isso, deve aceitar inevitavelmente experiências indesejadas como o assédio.
Vamos imaginar uma situação corriqueira no carnaval: um grupo de amigas sai às ruas fantasiadas e cobertas por purpurina. O clima é de total descontração e, em meio à multidão, barulho e níveis elevados de álcool, uma delas esbarra com um homem e, ao que tudo indica, o interesse foi mútuo e os dois passam dos olhares para os flertes. Tudo saía como o esperado, pois festas comumente se tornam palco para a manifestação de desejos que muitas vezes repousam guardados na rotina do restante do ano.
Até que em dado momento esse interesse deixa de ser mútuo e, ao recusar as investidas e tentar se desvencilhar do homem, a mulher tem um beijo roubado. Ela se sente violada e culpada. Em questão de minutos, uma mulher sofreu assédio e todos ao redor estavam “apenas curtindo”. Desta vez, o “não” foi insuficiente. Frequentemente, a negativa exige uma objetividade que contrasta com a ‘magia do carnaval’.
Para entender os mecanismos por trás do assédio, primeiro, precisamos compreender as relações de poder entre os gêneros. Sobre isso, a socióloga Heleieth Saffioti ressalta que a desigualdade de gênero não é natural, mas sim resultado da tradição cultural, das estruturas de poder e dos agentes envolvidos na trama de relações sociais. Sendo assim, a sociedade como um todo tem um grande papel na construção desta crença de que o assediador teria direito sobre o corpo do outro.
Como integrantes destas tramas sociais, o que estamos fazendo para evitar que mulheres tenham seus corpos transformados em objetos centrais destas relações de poder, sobretudo em eventos de massa como o carnaval? A campanha “Não é não!”, que existe desde 2017, é umas das campanhas mais conhecida contra o assédio no carnaval. Todos os anos são distribuídas tatuagens temporárias com os dizeres “Não é não!”, também são realizadas divulgações através de times de futebol, parcerias com marcas engajadas no movimento e palestras em empresas e escolas.
Em novembro de 2023, entrou em vigor uma lei com o mesmo nome que protege mulheres de assédios sofridos dentro de lugares privados noturnos, garantindo que todas conheçam seus direitos; sejam afastadas e protegidas imediatamente do agressor, tenham suas decisões respeitadas com relação às medidas de apoio previstas na lei e sejam acompanhadas até seus transportes caso decidam deixar o local. Além disso, em 2018, a importunação sexual passou a ser crime em resposta a comportamentos invasivos de natureza sexual em locais públicos, mesmo sem o emprego da força ou ameaça grave. Por parte das prefeituras, a presença policial é reforçada e o monitoramento por câmeras de segurança é intensificado.
É notável que nos últimos anos houve um esforço considerável para evitar o assédio dentro e fora do carnaval, mas, apesar de todas estas medidas de conscientização e proteção, os números ainda são alarmantes. Segundo dados exclusivos levantados pelo Instituto Locomotiva e a Question Pro, 7 em cada 10 mulheres afirmam terem medo de sofrer algum tipo de assédio durante o carnaval e 8 em cada 9 concordam que combater o assédio é uma responsabilidade de toda a sociedade. Na contramão desta luta, houve uma redução de 97% do orçamento para políticas de enfrentamento à violência contra mulheres durante o governo anterior.
Há mais de 15 anos o Instituto Avon abraçou a causa do enfrentamento às violências contra meninas e mulheres e em novembro de 2023 lançou, junto ao DataSenado e a Gênero e Número, uma plataforma que reúne os principais dados públicos e indicadores de violência contra mulheres, o Mapa Nacional da Violência de Gênero.
Nesse panorama crítico, desponta a chocante constatação de que mais de 60% das mulheres vítimas de algum tipo de violência optam por não denunciar, envoltas numa rede complexa de revitimização e julgamento. Além disso, a taxa de importunação sexual entre mulheres pretas e pardas é maior em comparação a outras mulheres, 5,6 e 5,1 a cada 100 mil mulheres respectivamente, o que chama nosso olhar a mais um problema latente da sociedade: o racismo.
Nossa jornada contra o assédio ainda está longe do fim. O poder público tem grande responsabilidade nesta luta ao garantir investimentos, melhorias e ampliações na rede de apoio, além de oferecer transparência na divulgação de dados sobre segurança pública.
Como sociedade podemos cumprir nosso papel não permanecendo em silêncio diante de uma mulher importunada, não compactuando com o machismo em qualquer situação, abandonando como cidadãos a postura de vitimização da mulher e estando presente como rede de apoio para a mulher em situação de violência que precisa da nossa ajuda.
Fonte: Mulher