A vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados no dia 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Até o momento, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz foram detidos por envolvimento direto no crime. Contudo, além de ainda não terem sido realizados os respectivos julgamentos, não se chegou aos mandantes.
Mas, para além de falar da dor que a falta de justiça causa na sociedade e, principalmente, nos familiares e pessoas próximas à vereadora, evocar o nome de Marielle é falar sobre como as suas ações em vida se fazem presentes no Brasil.
A socióloga foi eleita parlamentar na Câmara Municipal do Rio em 2016, com 46.502 votos, mas antes disso já atuava como assessora parlamentar do então deputado estadual Marcelo Freixo, então do PSOL. Ela também tinha um trabalho social de base muito forte voltado às pessoas negras, periféricas e pobres.
“A gente fala da Marielle desde o assassinato dela a partir do lugar da dor, da exigência por justiça, e está correto. Mas acho que a gente fala pouco sobre o ótimo trabalho dela como parlamentar, militante e dirigente política”, pontua Luana Alves, vereadora do PSOL em São Paulo.
A parlamentar paulista lança luz sobre as ações da mestre em Administração Pública no Rio de Janeiro, e destaca um projeto de assistência técnica gratuita para construção e reforma de habitações voltado a pessoas pobres no Rio , de autoria de Marielle, que só foi aprovado em 2019.
Thais Ferreira, vereadora do PSOL no Rio de Janeiro eleita em 2020, ressalta que nenhum projeto proposto pela socióloga foi aprovado enquanto ela estava viva, mas que o seu histórico de luta e a repercussão do seu assassinato fizeram com que a Câmara carioca tivesse de mudar o seu posicionamento diante de ações de autoria de mulheres negras.
“À luz de um assassinato político, à luz de uma tragédia que mancha a história da Casa, eles começam, de fato, a prestar mais atenção no fazer político destas mulheres”, destaca.
“Quando a gente consegue emplacar mais proposições, quando a gente consegue ter mais audiências públicas nesta Casa que foi ocupada por ela de forma brilhante, é uma vitória coletiva de todas nós. Mesmo que no ecossistema de sub-representação que a gente vive isso ainda seja insuficiente”, complementa.
Projetos de Marielle aprovados após a sua morte
Na esfera do apontamento feito por Thais, lembra-se que os primeiros projetos de autoria de Marielle só foram sancionados na Câmara do Rio em maio de 2018, ou seja, dois meses após o seu assassinato. Foram eles:
– Espaço Coruja (PL 17/2017): criação de espaços de acolhimento às crianças no período da noite, enquanto seus responsáveis trabalham ou estudam; – Dia de Thereza de Benguela no Dia da Mulher Negra (PL 103/2017): inclui no calendário oficial da capital carioca uma homenagem a uma histórica líder quilombola; – Efetivação das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (PL 515/2017): projeto de responsabilização do governo para que adolescentes cumpram medidas socioeducativas aprovadas pelo judiciário; – Dossiê Mulher Carioca (PL 555/2017): formulação de políticas públicas voltadas às mulheres através da compilação de dados da Saúde, Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro; – Assédio não é passageiro (PL 417/2017): institui uma campanha permanente de enfrentamento ao assédio sexual nos transportes públicos.
Ferreira ressalta a importância deste último PL citado, principalmente para mulheres negras e periféricas cariocas que enfrentam todos os dias um transporte público lotado e inseguro para os seus corpos. Ela frisa ainda a grande relevância da luta da presidente da Comissão de Defesa da Mulher em relação à ampliação das casas de parto no Rio.
Luana cita também a forte influência de Marielle no movimento “Liberte o Nosso Sagrado” no município do Rio. Esta ação, que contou com a voz, o apoio e o empenho de lideranças religiosas negras cariocas, teve o objetivo de tirar do Museu da Polícia Civil itens de religiões de matriz afro-brasileira que tinham sido apreendidos pelas forças de segurança entre os anos de 1889 e 1945, em um espectro do racismo religioso vigente até os dias de hoje.
As articulações e pressões sociais, que se intensificaram em 2017, surtiram efeito somente em agosto de 2020, quando a Polícia Civil do Rio assinou o termo de cessão do acervo religioso de mais de 200 peças para um espaço anexo ao Palácio do Catete voltado a itens históricos.
Inspiração para outras mulheres na política
Marielle Franco foi e sempre será exemplo para que mulheres negras se inspirem a entrar na política, e entre Thais e Luana não foi diferente. A vereadora carioca conta, inclusive, que no seu caso essa inspiração veio de maneira direta, na forma de convite.
“Ela foi a pessoa que me fez o convite para entrar nesse mundo da política. Eu tinha emprestado a minha casa para uma reunião de um grupo político composto por ela e outros parlamentares do PSOL. Eu fiz uma fala de abertura e depois disso ela perguntou se eu nunca havia pensado em entrar para a vida política e ser candidata”, relembrou.
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Thais lembra que no momento disse que não queria entrar naquele campo pelo fato de não ver tantas mulheres negras ocupando tal espaço, mas que a socióloga pontuou que poderia ser aquele “espelho”, e começou a convidá-la a participar de uma série de ações do PSOL.
“E no dia 8 de março de 2018 foi quando eu dei o último abraço em Marielle e ela perguntou ‘e aí, você vai ser candidata? Você vai entrar para o partido? Vem comigo negona’. Eu falei que seria uma responsabilidade muito grande mas que iria, sim. Eu estava contando muito com ela para poder abrir esse mundo, que é, para a gente, um lugar muito difícil. Então no dia 14 eu recebi a notícia. Parecia que nada mais fazia sentido, mas ao mesmo tempo eu percebi que aí mesmo que tinha que fazer”, enfatiza a parlamentar.
Luana, por sua vez, conta que teve a oportunidade de estar com a mestre em Administração Pública em alguns eventos no Rio de Janeiro. Ela, que entrou para o PSOL em 2013 mas que antes já atuava como militante em movimentos estudantis e da saúde, destaca o significado de Marielle para o reconhecimento da necessidade da presença feminina negra no parlamento.
“Foi necessário seguir um projeto político de questionamento de ordem e de fortalecimento da vida dos nossos. Assim como foi necessário reconhecer que, para além da luta de base, é importante ter uma luta por posições no Parlamento”, pontua. Ela também lembra de como a morte da parlamentar nutriu um medo entre seus familiares em relação à sua posterior candidatura.
“Meus pais são militantes antigos do PT, e quando Marielle foi morta e eu falei que ia ser candidata, cerca de dois anos depois, eles ficaram apavorados e falavam ‘você tá doida, você vai morrer, você viu o que aconteceu com a Marielle’. E isso é muito duro de escutar, porque é um recado brutal para toda a sociedade brasileira de ‘olha, se calem, olha o que a gente faz com uma vereadora’”, sublinha.
As vereadoras do Rio e de São Paulo são unânimes ao salientar que a maior lição que o assassinato de Marielle deixou para elas é a necessidade de aumentar cada vez mais a presença de mulheres negras em cagos políticos, fazendo com que elas possam se sentir pertencentes aos espaços dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo.
Legado vai de Anielle à representtividade para outra mulheres negras
As parlamentares analisam que Anielle Franco, irmã de Marielle e hoje ministra da Igualdade Racial , é claramente uma materialização do legado da vereadora assassinada em 2018. Além disso, jogam luz sobre a luta de toda a sua família, que segue na briga por justiça e por ações afirmativas em torno do seu nome, como a recente aprovação do Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento a Violência Política de Gênero e Raça.
“Anielle é, com certeza, um desses legados. O que ela faz é muito duro, todos os familiares da Marielle que seguem em um papel público de luta cumprem um papel fundamental e muito difícil. Porque, para quem estava próximo dela, não era só uma mulher abstrata, era uma irmã, uma companheira, uma filha”, pontua Luana.
“Eu acho muito legítimo que a irmã dela tenha se apropriado desse lugar de fazer política, e a gente precisa lutar para que ela se fortaleça cada vez mais neste espaço. É uma vitória coletiva de mulheres negras que se vêem nesse lugar de possibilidade não apenas de uma única história, mas de histórias nossas que se desdobram e trazem muitas de nós”, complementa Thais.
A vereadora do Rio afirma que, para ela, o maior legado deixado pela socióloga foi a mensagem de coletividade e continuidade entre as mulheres negras que buscam entrar e se estabelecer na política nacional.
“Eu interpreto o maior legado sendo essa responsabilidade de carregar a coletividade e a pluralidade de mulheres negras. Eu acho muito emblemática essa mensagem que ela deixou para todas nós. É sobre sermos continuidade uma das outras, e ela mostrou isso de diversas formas”, diz.
Já a parlamentar de São Paulo reforça que o legado de Marielle incide diretamente em um exemplo de coragem para que as mulheres num âmbito geral questionem as estruturas de violência que têm elas como alvo.
“Eu acho que a Marielle foi e é um exemplo muito forte de coragem. De não abaixar a cabeça para injustiça, de não abaixar a cabeça para os velhos poderes, de não abaixar a cabeça para as velhas estruturas de privilégio e de violência. Foi um legado de combate às velhas oligarquias. É um exemplo de força e de coragem muito forte, de questionamento e de combate a uma ordem que não nos serve”, salienta.
O assassinato de Marielle Francisco da Silva segue alimentando um sentimento de dor e revolta na sociedade brasileira. Mas, se cinco anos após a sua morte suas ações em vida ainda ecoam e servem como base para diversas lutas sociais, principalmente de mulheres negras, é porque a complexidade da sua existência se materializou na forma de um imenso legado.
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Fonte: IG Nacional