“Fui esvaziada por dentro. A pessoa que eu era se tornou completamente vazia, um buraco, uma falta, uma ausência que não cabia no peito.” É assim que Júlia, 24*, descreve sua rotina depois de perder a filha, Alice*, no sexto mês da gestação.
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Um descolamento prematuro da placenta causou uma perda significativa de sangue e oxigênio na barriga, o que levou ao falecimento de Alice minutos depois de seu nascimento.
“Ninguém me enxergou como mãe, os médicos foram frios e pouco compreensivos e, na faculdade, ninguém conseguiu entender porque eu estava tão triste. Falavam absurdos, como ‘ah, foi pelo melhor, Deus quis assim, ela nem chegou a nascer mesmo, não era um bebê completo, que bom que seu filho morreu e não nasceu doente’.”
Luto perinatal
A experiência de Júlia é reconhecida como luto perinatal, que representa as perdas ocorridas entre a 22ª semana da gestação e o primeiro mês de vida de um bebê. Os últimos dados divulgados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) revelam que, no ano de 2018, o Brasil registrou 45.875 óbitos dessa faixa.
Em entrevista ao iG Delas, a psicóloga e especialista em luto perinatal Daniela Bittar aponta que o falecimento de um bebê é uma das formas mais complexas de luto, já que a mãe se encontra biologicamente e neurologicamente conectada com a criança: “mesmo depois da morte, essa conexão não deixa de existir.”
Essa experiência também é visceral para toda a família, pois envolve não apenas a perda de uma vida, mas também todos os sonhos, expectativas e vínculos emocionais não vividos pela criança e todos ao seu redor.
“O luto natural envolve a superação. Eu consigo entender, por exemplo, que meus pais morreram, isso segue a lei natural da vida. Eu consigo até casar de novo se meu marido morre, mas se meu filho morre, eu estou misturada a ele por toda a vida. É muito diferente.”
Essa situação acarreta respostas emocionais diversas na mãe, como raiva, ansiedade, saudade e dor, e até respostas comportamentais, como insônia, choro, e queda de apetite.
A morte de um filho também afeta o relacionamento do pais em questão. Bittar explica que, na maioria dos casos, a mulher espera que o homem sinta o luto em conjunto, e quando ela não encontra empatia nessa dor, o sentimento de vazio e dor aumenta.
“Por isso que a gente tem que informar muito bem esses casais de cada um vai ter seu processo, cada um vai viver sua dor, dizer para o homem que ele pode sentir que ele tem que sentir.”
Não-reconhecido
Diferente de outros tipos de luto, o luto perinatal é considerado “não reconhecido”, ou seja, é ignorado e subestimado pela sociedade, familiares, amigos e colegas de trabalho. “É um lugar do não-reconhecimento pela sociedade, ele não é reconhecido porque não foi visto, não criaram vínculos ou perspectivas, e o luto acaba não sendo validado.”
Essa desvalorização chega de formas sutis, como frases e atitudes que minimizam a perda e indicam soluções para o insolucionável. Júlia* conta que chegou a ouvir que era ‘’nova demais” para estar chorando por uma criança que não chegou nem a nascer e que teria oportunidade de ‘‘fazer outro filho igual ao que morreu’’.
“É um tabu muito grande, porque a maior dor que uma pessoa pode sentir na existência é a perda de um filho, não tem dor maior que essa. E as pessoas têm dificuldade de falar sobre isso porque toca num lugar muito profundo. Entramos num lugar muito complexo, porque só a mãe tinha um vínculo afetivo e contato direto com a criança, só ela viveu a adequação de ter o bebê ali, dentro dela. É um lugar muito vazio, muito sozinho”, diz Bittar.
E como as mães podem lidar com esse acontecimento tão traumático? De acordo com Lara Carvalho, médica psiquiatra e especialista em luto, é necessário se permitir sentir.
“A mãe precisa reconhecer que a dor, ali, precisa ser sentida, precisa ser vivida, precisa ser reconhecida. Não se pode reprimir esses sentimentos, pois eles são reais, são crus, são viscerais”, conta a médica.
Procurar a ajuda de um profissional de saúde mental especializado em luto perinatal também é uma opção, já que eles podem fornecer apoio e orientação específicos para essa situação.
Em momentos como esse, uma rede de apoio também é essencial. As mães, muitas das vezes internadas ou em situação de choque, podem encontrar dificuldade para lidar com certas decisões imediatas. Os avós, os amigos, irmãos e parentes podem ser aliados nesse processo, respeitando o luto e acolhendo os pais enlutados.
“São significados que são perdidos com essa morte e a mãe precisa saber que todos compreendem isso. Ofereçam abraços, atos de serviço, mostrem-se disponíveis”, adverte.
Grupos de apoio também podem ajudar os pais a lidarem melhor com a morte. Seja em encontros presenciais ou até em fóruns online, conversar com pessoas que passaram por experiências semelhantes pode ser reconfortante.
Classe médica
Uma das pessoas responsáveis pela mudança do discurso ao redor do luto perinatal no Brasil é Heloisa de Oliveira Salgado, psicóloga e pós-doutora pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
Desde os anos 90, Heloisa estuda temas como maternidade, desenvolvimento infantil e contexto familiar. Mas foi em 2018 que, em parceria com a obstetra Carla Polido, ela desenvolveu seu trabalho mais extenso e impactante: um livro de protocolos para o atendimento durante o luto perinatal no Brasil.
“Tenho uma amiga brasileira que teve um bebê no Canadá. Ela engravidou lá e, com 39 semanas, descobriu que o bebê havia falecido. Ela passou por todo o processo de dar à luz ao bebê e, quando ela me contou sobre a experiência que teve no Canadá, fiquei extremamente impressionada. As coisas que ela me relatou eram muito diferentes das histórias que ouvia de mulheres aqui no Brasil.”
Em sua pesquisa e em seu próprio trabalho, a psicóloga percebeu que os profissionais brasileiros, em geral, não estavam preparados para lidar com a morte na maternidade, já que não existia uma diretriz que os guiasse nesse processo.
“Eu já tinha, enquanto psicóloga e pesquisadora, conversado com muitas mulheres que haviam passado por perdas aqui no Brasil, e eram situações muito trágicas, algumas saíam muito traumatizadas.”
Inspirada pelo protocolo canadense, ela começou a escrever o próprio guia. Entre questões culturais, como a visão de luto e assistência, até questões estruturais, como a construção das maternidades, o guia aborda as boas práticas que os profissionais da saúde podem seguir em situações de morte perinatal.
As principais questões abordadas por Heloisa são o acolhimento psicológico da mãe e da família, a capacitação dos profissionais, a criação de memórias da criança e a mudança de estrutura dos hospitais.
“A primeira parte que abordo é uma mudança cultural de protocolos. Precisamos mudar a forma que a gente enxerga o luto. Os profissionais, por exemplo, enxergam que pegar um bebê morto no colo é traumático, que tirar fotos é mórbido. O protocolo vem para dizer que não, que não há nada de mórbido nisso, que o mórbido está na cabeça de quem não passou pelo luto”, conta.
Vários pais se arrependem, por exemplo, de não terem tirado fotos da criança. Um hospital que está preparado para essa situação saberá que essa é uma das partes importantes do luto – a criação de memórias, mesmo que distantes, que preservem a história do bebê. Fotos, mechas de cabelo, carimbo dos pés – todos podem ser eternizados pela equipe.
Ela também menciona a problemática acerca das questões estruturais dos hospitais. Na maioria das maternidades, não existe uma divisão ou ala exclusiva para mães que perderam os filhos no parto. A existência de espaços privativos pode trazer mais conforto no momento da perda – as alas separadas podem oferecer mais silêncio e privacidade para as mães.
A equipe inteira do hospital também necessita de treinamentos para evitar constrangimentos com a família e a mãe. “Dos médicos até os seguranças. Eles, por exemplo, podem perguntar de forma invasiva, como ‘ai, cadê seu bebê?’, ou ‘você já levou o bebê para mamar?’ e ouvir isso pode machucar muito a mãe.”
O papel dos profissionais de saúde nessa situação é, primeiramente, saber como se comunicar adequadamente. Isso envolve utilizar termos e palavras adequadas, além de fornecer explicações diferentes de acordo com a pessoa que está à sua frente, levando em consideração seu nível de informação e dificuldade de compreensão. O objetivo é saber comunicar a morte e os procedimentos de forma eficaz.
“É importante não fazer inferências sobre o que a pessoa deseja. O profissional não pode assumir que é melhor a família não ver o bebê apenas porque acha que ela está traumatizada, por exemplo. Em vez disso, o profissional deve apresentar as possibilidades, explicar os riscos e benefícios e permitir que a pessoa faça sua escolha.”
Uma resposta negativa por parte da família, como não querer ver o bebê ou não querer criar memórias, não deve ser considerada definitiva para os médicos. Heloisa explica que quando se trata de luto, é necessário tempo e oportunidade para que as famílias possam compreender o que aconteceu.
“Muitas dessas famílias chegam à maternidade com a expectativa de levar o bebê para casa, não de enfrentar um enterro. Portanto, é importante oferecer tempo para que a família possa processar a situação, explicar e proporcionar suporte adequado”, finaliza.
Fonte: Mulher