Com restrições impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela Receita Federal para a comercialização de ouro no país, contrabandistas que exploram o minério de forma ilegal passaram a levar sua produção a países vizinhos, como Venezuela, Guiana e Suriname, segundo apontam investigações da Polícia Federal. Nesses lugares, as quadrilhas aproveitam regras mais frouxas para a negociação dos metais para exportá-los aos Estados Unidos, Europa e Oriente Médio.
Uma operação deflagrada no último dia 11 revelou detalhes de como funciona o tráfico internacional de ouro ilegal. O alvo principal foi uma organização criminosa suspeita de movimentar R$ 4,3 bilhões entre fevereiro de 2023 e março de 2024.
A Polícia Federal aponta a utilização de imigrantes venezuelanos para fazer o translado aos países vizinhos. Além disso, troca de mensagens entre os integrantes do grupo aponta que empresários do Líbano e da Arábia Saudita eram convidados para visitar áreas de mineração na Amazônia a fim de investirem no negócio irregular.
‘Núcleo operacional’ em Boa Vista
Segundo relatório da investigação, havia um “núcleo operacional” em Boa Vista (RR) e outro em Itaituba (PA), conhecida como “capital do ouro” no país, tanto legal quanto ilegal. Após serem retirados dos campos de mineração, os metais eram enviados para Manaus ou Belém, de onde saem voos para a Guiana e Venezuela.
A operação batizada de Flygold 2 se iniciou a partir da prisão do venezuelano Anthony Morillo Mendez, em outubro de 2023, em Santarém (PA). Ele foi apontado como um dos responsáveis pelo tráfico ilegal após ser flagrado com 21 quilos de ouro guardado em garrafas térmicas na mala, enquanto embarcava no aeroporto de Santarém com destino a Manaus. Procurada, sua defesa não retornou aos contatos.
Ao realizar buscas nos endereços de Anthony Mendez, os agentes localizaram malas com fundos falsos, fitas e garrafas térmicas onde o minério era acondicionado. Outros cinco venezuelanos suspeitos de participarem do esquema também foram alvo da operação. Segundo a Polícia Federal, há indícios de que eles transportaram mais de 400 quilos de ouro (o equivalente a R$ 130 milhões) em apenas um mês.
Dois meses depois da prisão de Mendez, em dezembro de 2023, uma tentativa de assalto a um dos integrantes do grupo também motivou a apreensão de 47 quilos de ouro (o equivalente a R$ 14 milhões) pouco antes do embarque em um jatinho em Manaus. Testemunhas acionaram a Polícia Militar e todos acabaram presos — o transportador que não conseguiu comprovar a origem do minério e os bandidos que tentavam roubar a carga.
Os dois flagrantes ocorreram meses após o Supremo ter determinado o fim da chamada “presunção de boa fé” no comércio do ouro. Esse mecanismo permitia que os compradores de material retirado dos garimpos apresentassem como garantia de procedência apenas a palavra do garimpeiro de que a extração foi feita em área legal. A partir de então, os donos das lojas autorizadas a comercializar o minério passaram a ser responsabilizados caso adquirissem produto de origem ilegal.
Em maio deste ano, a Receita Federal também instituiu a nota fiscal eletrônica do ouro, o que permitiu à fiscalização uma checagem mais efetiva e ágil — antes tudo era documentado em papel.
O impacto das medidas se refletiu no mercado aurífero no Brasil. Segundo levantamento do Instituto Escolhas, houve uma queda de 84% na produção do minério pelos garimpos de janeiro a julho de 2024 em comparação com o mesmo período de 2022. No Pará, o decréscimo foi ainda mais acentuado, de 98%, no mesmo período.
— As DTVMs (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, as únicas autorizadas a fazer a primeira compra do ouro) eram notoriamente uma peça usada para esquentamento de ouro. A atuação delas foi bastante podada com a superação do paradigma da boa-fé do comprador de ouro em decisão do STF — afirmou a procuradora Thais Medeiros, do Ministério Público Federal do Pará.
A procuradora afirmou, no entanto, que não foi verificada uma “necessária diminuição nas áreas de garimpo detectáveis por imagens de satélite”. Na prática, o ouro continua sendo explorado, mas deixou de ser registrado.— Recebemos essa informação de que o escoamento está migrando para a via ilegal — afirmou Medeiros.
Lavagem
Em 2021, o Ministério Público Federal no Pará pediu na Justiça a suspensão das três maiores DTVMs em operação no país que possuíam diversas filiais em Itaituba. A ação, que ainda deve ser analisada pela Justiça, apontou que foram lavados 49 toneladas de ouro ilegal na Amazônia entre 2019 e 2020. O dado foi levantado em uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialistas consideram como positivo o efeito das novas regras instituídas pelo Supremo e a Receita, mas pedem mais atenção à fiscalização nas fronteiras.
— Antes, o ouro ilegal era facilmente “esquentado” e exportado para grandes mercados, saindo pela porta da frente. Agora, isso mudou. As medidas fecharam uma porta para o ouro ilegal e aumentaram o risco e os custos das operações ilícitas — afirmou Larissa Rodrigues, diretora do Instituto Escolhas, associação que desenvolve pesquisas na área de sustentabilidade.
FONTE: Jornal O Globo