No auge da guerra fria, Herbert Marcuse escreveu que a manutenção do equilíbrio entre as potencias nucleares era a compreensão mútua e racional do significado da iniciativa de uma atuação nuclear. A palavra dissuasão, mais do que desejável, encerra um conceito adorável. Analogicamente, entre os múltiplos significados e acepções ela também comporta desencantar, desaconselhar, tirar da cabeça, e, finalmente, na linguagem comum “ducha de água fria”. Insisto na palavra, pois seu significado parece ser desconhecida do vocabulário dos fanáticos e isto é fundamental para analisar a extensão do problema da guerra que se iniciou. Grupos terroristas de inspiração teocrática não compreendem a dissuasão porque o impulso ao terrorismo é diretamente dependente da tanatofilia, uma glorificação, a adoração da morte como sacrifício que independe dos resultados: serão gozados a posteriori da vida.
Para além disso, especula-se que os ataques ignominiosos que a organização terrorista Hamas perpetrou contra populações civis no dia 07 de outubro também tiveram como leitmotiv atrair Israel — que deve agir com extrema sabedoria e prudência — para uma segunda emboscada. Ou seja, com requintes de inédita crueldade instalar um terror inaudito e maximizar o medo com uma devastação sem precedentes através de massacres, estupros, incineração, decapitação de bebes, e sequestros ainda em andamento. Os objetivos : destruir o mito da invulnerabilidade, obstaculizar os acordos de paz com a Arábia Saudita e instigar o isolamento político de Israel.
Ora, a especialidade da própria cultura judaica ao longo do milênios tem sido iconoclasta, portanto, a primeira função já estava previamente destinada ao fracasso. O exercício da autocritica, da humildade e sobretudo a capacidade constante de reavaliar o contexto, sempre fez parte do DNA do povo judaico. A conhecida metáfora de uma pergunta respondida com outra pergunta é uma prova auto evidente deste procedimento hermenêutico quase inato. Aspectos que os fanáticos de qualquer espécie são privados. Pelo contrário, o ódio dos fundamentalistas concentra-se exatamente sobre a dúvida, o impreciso, o que não se pode ter certeza. É compreensível que não suportem as civilizações que se põem a prova, as democracias, e o desafio permanente sobre as certezas absolutas: a relativização de tudo.
A segunda missão dos terroristas, também está se comprovando deficitária, ainda que seja um aspecto a ser observado e seguido com cautela: sabotar acordos e conseguir o isolamento político de Israel. Boa parte do ocidente, especialmente as verdadeiras democracias – já que existem as de ocasião— tem reagido de uma forma compassiva e favorável a Israel . Vale dizer, não exatamente ao Estado hebreu, mas se posicionando contra a barbárie, neste claro ataque não apenas aos judeus e pessoas de outras religiões e etnias — de 40 países distintos — mas a favor de toda civilização.
As marcas do holocausto ainda estavam vivas, em longo processo cicatricial, destarte, aplacadas pela ideia de que agora havia um Estado, perto da infalibilidade, nos aspectos segurança e acolhimento. Um governo que pudesse defender os judeus no caso de oportunistas enxergarem uma brecha para repetir erros antigos, erros que muitos tentaram durante o percurso da história. Nenhum Estado é infalível, e, de fato, Israel cometeu erros e desperdiçou muitas oportunidades de paz com a ala mais pragmática da Autoridade Palestina, alias assassinados e expulsos de Gaza pelo Hamas.
O que fazer quando se enfrenta um inimigo que rejeita a paz, não porque a desconhece ou ignora o termo, mas precisamente porque sabe exatamente o que ela significa?
Então, como nos entenderemos?
A paz é um ardil, um álibi para moderar impulsos, um alimento que ninguém aceita de forma natural. O grande significado da paz, ainda ignoto, não pode ser compartilhado. Não é silencio, concórdia, tranquilidade, ou “ai dos vencidos”. O que a paz não traz, as bombas suprem. Para formar tréguas é preciso coexistir senão na língua, na linguagem. O multiculturalismo, que deveria significar distensão e convívio, vem transformando-se em multisectarismo. Numa corrosão progressiva que alcança a cultura, as redes eletrônicas multiplicaram dialetos e tribos. Depois de quase oito décadas distantes do fim da segunda guerra mundial, há uma análise mais ousada do que a superficialidade das teorias conspiratórias de Chomsky: o terror pode estar sendo legitimado sob a manipulação política do medo. Vários especialistas afirmaram que as organismos terroristas ocuparam o lugar de administrações ausentes — sob um modo operacional similar no crime organizado e outros bolsões de violência. E há quem leia de forma reducionista de que a presença do estado significa esquerda, e sua ausência poder-se-ia traduzir como direita. Evidentemente, nem um nem outro.
O Islã não radical sabe que tudo que tem sido feito pelo Hamas em nome da fé é uma perversão das regras religiosas muçulmanas. Numa aparente contradição, enquanto jihadistas queimam “infiéis” e massacram civis, crianças ou adultos, ao mesmo tempo subsidiam tratamentos médicos sofisticados para pessoas doentes e funcionam sob os auspícios das lideranças tribais, que, em troca, lhes dão (frequentemente não tem outra opção) sustentação moral e esconderijo em suas casas e lugares públicos em caso de respostas militares das entidades atacadas.
Os grupos terroristas suprem então lacunas do poder. Além disso, analogamente aos vendedores eletrônicos de fé, oferecem uma saída remunerada à transcendência. O ocidente tem preferido não constatar um outro gap psicológico óbvio: a crise de sentido que assola as sociedades. A esquerda, por sua vez , desconsidera a “fome de significado” para atribuir toda responsabilidade à marginalização socioeconômica. Não, não há nada de islâmico em trucidar para purificar. Quando Umberto Eco teve a coragem de nomear o Isis como o “novo nazismo” uma parcela de progressistas pulou de suas cadeiras para acusar o escritor de parcialismo e reacionário (sic). Ainda que tempos obscuros estejam de volta, melhor aceita-los e nomeá-los do que nega-los.
Velhos inimigos precisam superar diferenças e voltar a aceitar que, com um inimigo comum à espreita, cedo ou tarde a união será inevitável. Mas urge definir uma tipificação: assumir que existem inimigos públicos da humanidade incuráveis que devem ser isolados e trazidos à justiça. Para estes impor os códigos de paz, de preferência, que contenham tolerância e liberdade. Ninguém sairá sozinho dessa enrascada e nem mesmo há garantia de que um consenso provisório terá êxito. Enquanto Israel não possuir um canal de mídia para dar a sua versão dos fatos não vejo como reverter a longa construção que antecipada e permanentemente privou Israel da presunção de inocência. Vale dizer, não importa muito o que acontece na realidade, perdura sobre o Estado judaico a imagem de culpado ou devedor em relação à opinião pública mundial. Parece que o debate, o argumento lógico, mesmo as provas históricas não demovem os convictos de sempre. Usam o debate apenas e exclusivamente para narrar seus dogmas e emitir suas certezas peremptórias.
Não se trata de debate aberto, de escuta, processo hermenêutico de interpretação para alcançar consensos intelectuais, mesmo precários. Não.
É sempre importante lembrar que a pulsão de morte, alimento predileto dos fanáticos, costuma ter curso errático.
E imprevisível.
Paulo Rosenbaum é escritor e médico brasileiro. Autor de ensaios críticos sobre Medicina e ficção, possui vários textos publicados em livros, revistas e jornais, no Brasil e no exterior, e em seu blog “Conto de Notícia”, no jornal O Estado de S.Paulo. Possui graduação em Medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), mestrado em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (1999) e doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo (2005), pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (2010). Nascido em São Paulo, é filho da pintora Nilda Raw e do arquiteto Mauricio Rosenbaum, e neto de sobreviventes do Holocausto originários da Polônia , da Ucrânia e da Checoslováquia (atualmente, República Tcheca).
Fonte: Internacional